Alfons C. Salellas Bosch
Captatio benevolentiae: O texto que o leitor está prestes a ler era um projeto de artigo para revista. No entanto, devido à crise internacional provocada pela impostura do atual governo de extrema direita brasileiro frente aos incêndios na Amazônia dos últimos dias, julguei conveniente publicar estas notas através do blog do Centro de Estudos Hannah Arendt.
A categoria do cuidado ganhou nos últimos anos uma importância capital na obra de Leonardo Boff, um dos intelectuais brasileiros contemporâneos mais reconhecidos internacionalmente cujo enfoque se enquadra dentro da perspectiva do pensamento complexo. Fundador e expoente iniludível da Teologia da Libertação, a trajetória de Boff se alimenta, entre outras, da filosofia, psicologia, sociologia, política, ecologia – isto é, ciência – e espiritualidade, no intuito de reflexionar a partir de diversos lugares sobre o significado da vida humana, junto com a das outras espécies, no mundo e na Terra.
Nascida em 1906, A biografia intelectual e pessoal de Hannah Arendt está marcada por duas datas. A primeira é 1924, quando entrou na Universidade de Marburg para estudar filosofia com Martin Heidegger. A segunda é exata, 27 de fevereiro de 1933, quando ao incêndio do Reichstag em Berlim se seguiram as prisões preventivas e ilegais nessa mesma noite. A própria Arendt foi arrestada e privada de sua liberdade durante um curto período de tempo. Convencida de que a partir desse momento não se podia olhar para outro lado, focou seus esforços na política e tornou-se uma de suas maiores teóricas. Fugindo das ruinas que deixou o nazismo, Arendt empreendeu uma labor intelectual voltada para a constante re-criação do mundo – segundo ela um artefato humano – dentro do seu habitat natural, o planeta Terra. Ela morreu em 1975.
I. Diagnóstico da Modernidade
Hannah Arendt e Leonardo Boff compartilham um diagnóstico muito semelhante a propósito da Modernidade. A era moderna, que cientificamente teve seus começos entre os séculos XVI e XVII, está, segundo o pensador brasileiro, dominada pelo paradigma ainda vigente da dominação e da conquista, se rege pelo tipo de racionalidade instrumental-analítica e um ídolo norteia seu percurso: o progresso indefinido, cuja equação assegura que riqueza mais poder equivale à felicidade para o maior número. Com Descartes, o homem acreditou ser o dono e o senhor da natureza, em vez de ser mais um na corrente da vida. Segundo Bacon, fundador do método científico moderno experimental, o homem deve “tratar a natureza como o inquisidor trata o seu inquirido: torturá-lo até que entregue todos os seus segredos”, e nem Hobbes, nem Locke, nem Rousseau, nem Kant, formuladores do pacto social que ainda subjaz no ordenamento das nossas sociedades, incluíram a natureza ou a Terra nas suas reflexões, pois não suspeitavam que tanto elas como a vida em geral pudessem algum dia estar ameaçadas pela mão do homem. Este é, para Leonardo Boff, o grande equívoco de todo o projeto da Modernidade: erguido sob valores falsos, de conquista e dominação, desconsiderou a Terra, dando por descontado que ela iria para sempre oferecer recursos, bens e serviços e seria ilimitada em sua resiliência. Assim, o progresso subjugou até destruir culturas ancestrais, como a dos Guaranis, Maias, Quéchuas, Mapuches, Incas e Astecas, assim como outras da África e da Ásia, com a falsa promessa, nunca cumprida, de fazer participar tais povos da pretendida riqueza dos novos tempos. Desta forma, sem desprezar aspectos inegavelmente positivos na medicina, na locomoção ou nas comodidades domésticas, entre outros, Boff denuncia que a espécie humana, mediante a tecnociência
ocupou 83% da superfície do planeta, depredando seus bens escassos e modificando a base físico-química de sua infraestrutura ecológica. O consumo humano ultrapassou em 30% a capacidade de reposição dos bens e serviços naturais produzidos pela Terra [e] gases de efeito estufa, acumulados nos quatro séculos de industrialização, estão provocando o aquecimento global do planeta (BOFF, 2012, p. 73).
Arendt, como Boff, parte da hybris, ou seja, a desmedida à que chegou o conhecimento técnico moderno ao ponto de fabricar bombas atómicas capazes de terminar com toda a vida orgânica na Terra. Arendt abre sua reflexão com o significado do lançamento do satélite artificial Sputnik em 1957. Surpreendentemente, e de acordo com ela, a reação que seguiu a esse fato histórico inegável não foi a do orgulho diante do alcance do domínio tecnológico humano, mas a de um alívio por ter encontrado uma saída daquilo que estava sendo considerado uma prisão. Hannah Arendt distingue na sua obra entre mundo, o artifício humano que separa a existência dos homens do ambiente meramente animal, e a Terra, que é “a própria quintessência da condição humana, e a natureza terrestre”, o habitat que proporciona a vida que liga o homem aos outros organismos vivos. À vista disso, esta autora se pergunta: a emancipação e a secularização promovidas pela era moderna, desembocarão no repúdio da Terra, “Mãe de todas as criaturas sob o firmamento”? No ponto em que as “verdades” da ciência moderna podem comprovar-se matematicamente e tecnologicamente, mas não se prestam mais à expressão do pensamento e do discurso comum, a hora pode ter chegado na qual já não possamos pensar e falar sobre aquilo que somos capazes de fazer. Neste cenário, e acredito que seria difícil sustentar que não seja já o nosso, Arendt, em 1958 escreveu:
Se for comprovado o divórcio entre o conhecimento (no sentido moderno de conhecimento técnico [know-how] e o pensamento, então passaríamos a ser, sem dúvida, escravos indefesos, não tanto de nossas máquinas quanto de nosso conhecimento técnico, criaturas desprovidas de pensamento à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível, por mais mortífera que seja (ARENDT, 2014, p. 4).
Leonardo Boff se preocupa por deixar claro nos seus artigos, livros e conferências que a humanidade e a Terra não são entes separados, mas formam uma única entidade complexa. Sem maiores preocupações com a tradição bíblica, a obra deste teólogo contempla o seguinte pressuposto, verdadeiro alfa e ômega da sua reflexão: “não estamos apenas sobre a Terra, mas fazemos parte dela; somos Terra que sente, pensa, ama e cuida” (BOFF, 2018, p. 32). De acordo com Boff, este é o sentido positivo e irrenunciável da planetização, que contrapõe ao termo globalização, cujo significado é apenas econômico. Nesta sequência, devem ser mencionados três documentos que chegaram para emoldurar um pensamento já formado: a oficialização da nomenclatura Mãe Terra pelas Nações Unidas, no dia 22 de abril de 2009, e a Carta da Terra do ano 2000 – uma iniciativa da ONU, desenvolvida pela sociedade civil –, que junto a Encíclica do Papa Francisco de 2015, Laudato Si, oficializaram a expressão Casa Comum, com o objetivo de tornar transparente a profunda unidade da espécie humana com o seu habitat natural.
Ao velho paradigma da dominação e da conquista (razão instrumental), Leonardo Boff contrapõe uma cosmologia de transformação e de libertação sob o novo paradigma do cuidado (razão sensível). Boff encontra seu fundamento filosófico em Ser e tempo de Martin Heidegger, para quem a realidade recebe seu verdadeiro sentido através da preocupação inquieta do cuidado. O filósofo alemão inspirou-se na Ética a Nicômaco e na Retórica de Aristóteles para desenvolver a ideia de que “o cuidado é o modo de ser primeiro de todo ser humano em sua relação para com o mundo, e não somente uma orientação particular e interior da alma, como aparecia nos autores cristãos”. O cuidado coloca o homem como ser-no-mundo, é a estrutura originária do Dasein – da existência humana – e portanto, ser homem, ser mulher, implica estar constituído de cuidado. Nas palavras do próprio Heidegger: “o cuidado significa um fenômeno ontológico-existencial básico” (HEIDEGGER, 2012, p. 261 apud BOFF, 2012, p. 53). Com efeito, o ser humano é capaz de cuidar porque ele já é cuidado na sua estrutura originária básica. Porque precisou e recebeu um cuidado natural e objetivo, por parte de um “deus” ou de algum outro, o ser humano é capaz, como projeto ético assumido conscientemente, de cuidar de si mesmo e dos outros na qualidade de valor e propósito pessoal, social e planetário. Desta forma, o cuidado passa de dado natural a dado cultural. Isto, observa Boff fazendo a análise de Heidegger, pressupõe levar a sério a fragilidade e a vulnerabilidade como dados primeiros do homem, ser que está “lançado no mundo” e continuamente exposto a riscos. Assim sendo, a condição humana exige o cuidado, que Heidegger define como um existencial, uma preocupação para o presente e para o futuro, não apenas de si, mas do outro e da vida. Para Boff,
“cuidado é não permitir que o desespero e o desamparo tolham o sentido da alegria de viver, pois, de qualquer forma, jamais poderemos deter o curso irrefreável da morte, hospedada dentro da vida desde o seu primeiro momento de existência” (BOFF, 2012, p. 63).
A humanidade do ser humano se deixa resumir na combinação entre cuidar e ser cuidado.
“Desta compreensão do cuidado, enquanto natureza do ser humano no mundo e na história, emerge a dimensão ética, que não se deriva do cuidado. O próprio cuidado é sinônimo de ética e do ético no sentido clássico do ethos grego, como cuidado da casa e de todos os que nela habitam, seja a casa individual, seja a Casa Comum, que é o planeta Terra” (idem, p. 65).
Do ponto de vista científico, Boff salienta que o cuidado já estava presente há 3,8 bilhões de anos, quando a matéria alcançou o grau de complexidade e organização que permitiu a emergência da vida na Terra. Na linguagem do autor, “a primeira bactéria com cuidado singularíssimo dialogou quimicamente com o entorno, logrou um equilíbrio dinâmico que lhe possibilitou sobreviver e continuar a evoluir.” (idem, p. 43). Desde uma perspectiva quântica, sublinha o teólogo, esta foi uma possibilidade entre tantas outras, mas foi essa contingência realizada a que deu lugar ao nosso mundo e não a outro. Nesta narrativa, com a aparição do ser humano, o cuidado ganhou há sete ou nove milhões de anos uma qualidade nova: passou de um processo ecológico a um propósito consciente e tornou-se “amor, reconhecimento e comunhão. […] Desta forma o cuidado entra na definição do próprio ser humano como existência-no-mundo-com-os-outros, aberto à totalidade do Ser, ao futuro e à morte” (idem, p. 43-44).
No intuito de refundar o pacto natural, Leonardo Boff denuncia a quebra do contrato entre a Terra e a humanidade. Os homens, explica, criaram um mundo próprio, exilaram-se da Terra, sua casa, e estabeleceram com ela uma relação de troca, meramente comercial e extrativa. O pacto social resultante desta automutilação considera os humanos como únicos seres de direito, esquecendo o direito à vida dos outros seres que habitam o planeta e os direitos da Mãe Terra. Boff entende que a consequência deste movimento
foi a solidão, a perda de raízes e de conexão com os outros seres humanos, centrados somente sobre si mesmos. […] Para resgatar a conexão com a Terra faz-se mister articular o pacto social com o pacto natural, de forma que os elementos naturais sejam reconhecidos em seus direitos e sejam igualmente considerados cidadãos. A democracia, então, será sociocósmica; uma democracia da Terra, como o sonham milhões de povos andinos (idem, p. 86).
Hannah Arendt, na sua fenomenologia da vita activa, faz uma reflexão que presta apoio às palavras de Boff. Segundo a autora, o trabalho [labor] e a obra [work] sempre se confundiram historicamente, porém não são a mesma coisa. A condição humana do trabalho é a vida e inclui todas aquelas atividades cujo propósito básico é atender às necessidades próprias das funções biológicas mais elementares do homem. O ser humano precisa comer, beber, vestir, dormir e, ademais, ganhar o pão, isto é, participar do processo coletivo de produção material e, assim, conseguir o cumprimento dos bens mais básicos. Tem também que preservar a espécie, reproduzindo-a, e, para tanto, tem que gerar filhos. Cansado, ao final do dia precisa de repouso, mas no dia seguinte o processo recomeça. A atividade humana do trabalho compartilha com as funções biológicas da pessoa e da natureza uma categoria que define as três por igual: a categoria do eterno retorno cíclico. As atividades incluídas no nome genérico de trabalho não têm outro objetivo do que o de sustentar, preservar, perpetuar, ajudar e periodicamente recuperar as energias perdidas; sua origem reside no fato de que o homem é um ser corporal que possui um instinto de conservação e precisa exercê-lo.
Aquilo que é produzido pelo trabalho não perdura, sequer nem está destinado a perdurar. Paradoxalmente, as coisas que menos duram são as mais necessárias durante o processo da vida. Logo, precisamos voltar a produzi-las. Trabalho, descanso, recuperação das energias, trabalho. Comer, assimilar uma parte do que foi ingerido, expulsar o resto, e comer de novo. Este é o ciclo vital dos homens, um círculo que jamais é concluído, até que a morte chega, uma linha que passa sempre pelos mesmos pontos e que sempre volta ao ponto de partida. O trabalho não produz algo permanente, pois seus produtos são consumidos pelo processo da vida, e devem ser re-produzidos continuamente. Eles não têm identidade nem independência, e seu significado deriva do seu lugar no processo vital. Os produtos do trabalho são bens de consumo.
O trabalho e o consumo são duas etapas do sempre repetido ciclo da vida biológica. Esse ciclo é sustentado pelo consumo, e a atividade que proporciona os meios para o consumo é o trabalho. De modo que a sociedade de consumo é a sociedade do animal laborans. Mesmo necessário, o trabalho é fútil, pois seus produtos não podem originar um mundo “objetivo” em que qualquer um possa se instalar permanentemente. Ademais, do momento em que seus movimentos estão ditados pelo processo da vida, o trabalho não requer muita iniciativa ou pensamento. Ao contrário da atividade da obra [working], que termina quando o objeto está acabado e pronto para ser acrescentado ao mundo comum de coisas, “a atividade do trabalho [laboring] move-se sempre no mesmo círculo prescrito pelo processo biológico do organismo vivo, e o fim de suas ‘fadigas e penas’ só advém com a morte desse organismo” (idem, p. 121, grifos no original). É por isso, afirma Arendt, que muitas ferramentas antigas puderam ser substituídas, no mundo moderno, por máquinas que, ainda com seu processo singular, combinaram-se bem com o próprio processo do trabalho.
Sob o nome genérico de obra, a autora inclui todas aquelas atividades com as quais o homem produz objetos duráveis a partir do material natural, desde simples objetos de uso até as obras de arte. À diferença do trabalho, que produz bens consumíveis, e da ação, que não produz algo tangível, a obra produz “obras” e “objetos”. Um objeto possui uma relativa independência em relação a seu criador e precisa ser tratado de uma maneira específica. Diferentemente dos bens de consumo, ou produtos do trabalho, os objetos produzidos pela obra têm a pretensão de durar e de não serem absorvidos do momento da sua aparição. Além disso, “embora o uso esteja vinculado à deterioração desses objetos, a deterioração não é o destino destes últimos, no mesmo sentido em que a destruição é o fim intrínseco de todas as coisas destinadas ao consumo. O que o uso desgasta é a durabilidade” (idem, p. 170). Os objetos, feitos para serem utilizados, possuem a nova dimensão de oferecerem resistência ao homem (ob-jecta) e de estabelecerem-se no mundo. Para dizê-lo de um modo diferente, se não são usados, não se “evaporam” facilmente, pois eles possuem sua própria “vida” e podem sobreviver à indiferença ou à negligência humanas. Resistentes à passagem do tempo, às vezes os produtos da obra não são apreciados tanto pelo serviço que oferecem quanto por sua capacidade de duração. Inversamente, utilizando-os, também nós somos utilizados por eles e pelo mundo que eles criam. Desde que os produtos da obra têm a capacidade de constituir um mundo de aparências, são-lhes feitas algumas exigências, isto é, espera-se que eles sejam bonitos e agradáveis à vista, debate-se sobre seu estilo, são datados e incorporados à história pessoal e coletiva, e são procuradas formas de preservá-los e mantê-los. Assim, não é pouco frequente depositar sentimentos nos objetos, coisa não tão habitual quando a relação é com os bens de consumo. Em consequência, a atividade da obra corresponde à condição humana da mundanidade. Com cada objeto durável o homem constrói um ambiente, um meio, e incrementa a distância entre ele e a natureza. Correlacionado, o mundo provê o homem do sentimento de continuidade no tempo: pelo hábito de ver, mais ou menos, as mesmas coisas cada dia, se faz consciente de ser ele mesmo um dia apôs o outro. O mundo substitui o conceito cíclico do tempo da natureza pelo retilíneo, que é o distintivo do ser humano (nasce, vive e morre). Em outras palavras, “contra a subjetividade dos homens afirma-se a objetividade do mundo feito pelo homem” (idem, p. 171). De acordo com Arendt (idem, p. 195-196, grifo nosso),
o que está em jogo não é, naturalmente, a instrumentalidade como tal, o emprego de meios para atingir um fim, mas antes a generalização da experiência da fabricação, na qual a serventia e a utilidade são estabelecidas como critérios últimos para a vida e para o mundo dos homens. Essa generalização é inerente à atividade do homo faber porque a experiência dos meios e do fim, como está presente na fabricação, não desaparece com o produto acabado, mas prolonga-se até o destino final deste último, que é o de servir como objeto de uso. A instrumentalização de todo o mundo e de toda a Terra, essa ilimitada desvalorização de tudo o que é dado, esse processo de crescente ausência de significado no qual todo fim é transformado em um meio e que só pode ser interrompido quando se faz do próprio homem o amo e senhor de todas as coisas, não provém diretamente do processo de fabricação; pois, do ponto de vista da fabricação, o produto acabado é um fim em si mesmo, uma entidade independente e durável, dotada de existência própria, tal como o homem é um fim em si mesmo na filosofia de Kant. Somente na medida em que a fabricação fabrica principalmente objetos de uso o produto acabado novamente se torna um meio, e somente na medida em que o processo vital se apodera das coisas e as utiliza para seus fins é que a instrumentalidade limitada e produtiva da fabricação se transforma na instrumentalização ilimitada de tudo o que existe.
Para Arendt, o drama do mundo moderno é o de ter-se transformado numa sociedade de animal laborans, que destrói tudo o que cria em vez de construir para a duração. Embora sujeito de maneira limitada à lógica dos meios e dos fins, o homo faber da era moderna, entre os séculos XVII e XIX, era capaz de criar e de estabelecer um mundo. A novidade do animal laborans no século XX é a de levar ao extremo essa mesma lógica, que já não é a da criação duradoura mas a da destruição constante, num império do efêmero no qual a segurança de qualquer tipo deixou de existir. Isto termina por colocar em perigo o mundo e a vida humana neste planeta, que também podem acabar por serem consumidos. Arendt coloca o acento na extensão que a esfera da necessidade – o natural, o biológico, isto é, o meramente cíclico – experimentou no mundo moderno. Portanto, se, como escreve no seu Diário filosófico (cf. 2006, p. 541), a natureza do homem estivesse descoberta no animal laborans, isso significaria o final do humanismo, pois este teria alcançado o seu fim.
II. Rumo a um novo pacto
Urge, pois, uma mudança importante em forma de refundação do vínculo do ser humano com o mundo e com a Terra. Para Boff, o cuidado deve substituir a dominação em uma nova cosmologia que em vez de anular as diferenças, as acolha num biorregionalismo que valorize cada território. Não é verdade, denuncia o autor, que o homem seja apenas um ser de necessidades e de desejo de acumulação ilimitada, mas “um ser criativo, com fome de beleza, de comunhão e de espiritualidade”. O sentido de um ecodesenvolvimento deve encontrar o seu sujeito não na mercadoria, não no mercado, o setor privado ou o Estado, mas nos “seres humanos, tomados pessoal e coletivamente, e os demais seres vivos nas suas múltiplas dimensões. Em decorrência disso, Boff é partidário de um decrescimento econômico – ou “acrescimento” –, que garanta a sustentabilidade ambiental e a equidade social, que reduza a importância do quantitativo em favor da qualidade de vida para o maior número, preservando os bens e os serviços que serão necessários as futuras gerações. Urge pensar global e a longo prazo. Para tanto, se faz necessária a construção de uma democracia integral na qual o indivíduo se transforme num “cidadão-sujeito” empoderado, isto é, dono do seu desenvolvimento pessoal, mas também do coletivo; que coopere com os outros em vez de competir e concorrer contra eles; e que se autoeduque continuamente para exercer a cidadania junto com o seus concidadãos. Desta maneira se desenvolverá a práxis, ou seja, “esse movimento dialético entre a conversão do conhecimento em ação transformadora e a conversão transformadora em conhecimento”. Essa conversão permite que não mude apenas a realidade, mas também o sujeito. Para Boff, é imperativo superar o reducionismo da visão mecanicista para “assumir a cultura da complexidade, da corresponsabilidade e do cuidado”, através de três eixos: a sociedade sustentável, a democracia socioecológica e a educação libertadora. Em diálogo com os antropólogos chilenos, Jorge Maturana e Francisco Varela, com o pensador francês da complexidade, Edgar Morin, ou com o cosmólogo norte-americano Brian Swimme – os quais afirmam que o humano é um ser de socialidade, cooperação e convivialidade –; em diálogo também com a física quântica de Niels Bohr e Werner Heisenberg, Leonardo Boff reafirma a lei fundamental do processo cosmogênico:
Tudo tem a ver com tudo em todos os pontos e em todos os momentos; tudo está inter-relacionado, e nada existe fora dessa panrelacionalidade. Portanto, nada existe justaposto ou desarticulado. Senão que as coisas estão de tal modo interconectadas, que formam um incomensurável sistema (BOFF, 2018, p. 202).
Junto ao filósofo brasileiro, radicado na França, Michel Löwy, a utopia para a qual aponta Boff é a de um ecosocialismo que se inscreve na lógica global das coisas e é sua expressão histórico-social. Assim visto, o ecosocialismo transformaria num projeto político aquilo que a natureza prescreve em seu dinamismo interno, numa visão consciente do mundo e numa ética de solidariedade, cooperação e inclusão (cf. LÖWY, 2014, p. 63ss apud BOFF, 2018, p. 202). Boff não tem interesse algum em resgatar nenhuma utopia maximalista vinda do passado, nenhuma daquelas que custaram tantas vidas para nada, mas acredita com Shakespeare que o ser humano está feito de sonhos e, através do “princípio-esperança” de Ernst Bloch como guia norteador, pensa e age de acordo com o “viável possível” teorizado por Paulo Freire, ou seja, de acordo com aquelas utopias minimalistas que no dizer do pedagogo, fazem a sociedade “menos malvada e tornam menos difícil o amor”. Assim, para Boff, na sua perspectiva ecoteológica,
crer significa romper com o mundo da pura razão, da funcionalidade das instituições e da lógica linear, para as quais não há e não deve haver surpresas. Crer é abrir espaço para o imprevisto, para a magia e para o “milagre” de que as coisas podem, de repente, mudar e ganhar outra configuração que abre um horizonte de esperança para a vida humana (BOFF, 2018, p. 254).
Leonardo Boff compartilha com Hannah Arendt uma ética da responsabilidade em relação ao mundo e à Terra. Para a pensadora, a faculdade da ação tem sua raiz ontológica no fato da natalidade, que é para ela o milagre salvador do mundo. O nascimento de um ser humano marca a aparição de um ser irrepetível, único, dotado da liberdade e da capacidade de atuar de forma imprevisível. “O fato de o homem ser capaz de agir – escreve Arendt – significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável” (ARENDT, 2014, p. 222). Arendt mostra-se convencida de que só a plena experiência da capacidade para introduzir novos começos pode conferir ao mundo fé e esperança; essa esperança que é para Boff “mais do que uma virtude entre outras; é um motor que temos dentro de nós e que alimenta todas as demais virtudes, lançando para frente, suscitando novos sonhos de uma sociedade melhor e a coragem de realiza-los” (BOFF, 2018, p. 101).
Referências bibliográficas
ARENDT, Hannah. Diario filosófico. Barcelona: Herder, 2006.
______. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.
BOFF, Leonardo. O cuidado necessário. Petrópolis: Vozes, 2012.
______. Brasil: Concluir a refundação ou prolongar a dependência. Petrópolis: Vozes, 2018.