Cuidar do mundo: Um diálogo entre Hannah Arendt e Leonardo Boff

Alfons C. Salellas Bosch

Captatio benevolentiae: O texto que o leitor está prestes a ler era um projeto de artigo para revista. No entanto, devido à crise internacional provocada pela impostura do atual governo de extrema direita brasileiro frente aos incêndios na Amazônia dos últimos dias, julguei conveniente publicar estas notas através do blog do Centro de Estudos Hannah Arendt.

A categoria do cuidado ganhou nos últimos anos uma importância capital na obra de Leonardo Boff, um dos intelectuais brasileiros contemporâneos mais reconhecidos internacionalmente cujo enfoque se enquadra dentro da perspectiva do pensamento complexo. Fundador e expoente iniludível da Teologia da Libertação, a trajetória de Boff se alimenta, entre outras, da filosofia, psicologia, sociologia, política, ecologia – isto é, ciência – e espiritualidade, no intuito de reflexionar a partir de diversos lugares sobre o significado da vida humana, junto com a das outras espécies, no mundo e na Terra. 

Nascida em 1906, A biografia intelectual e pessoal de Hannah Arendt está marcada por duas datas. A primeira é 1924, quando entrou na Universidade de Marburg para estudar filosofia com Martin Heidegger. A segunda é exata, 27 de fevereiro de 1933, quando ao incêndio do Reichstag em Berlim se seguiram as prisões preventivas e ilegais nessa mesma noite. A própria Arendt foi arrestada e privada de sua liberdade durante um curto período de tempo. Convencida de que a partir desse momento não se podia olhar para outro lado, focou seus esforços na política e tornou-se uma de suas maiores teóricas.  Fugindo das ruinas que deixou o nazismo, Arendt empreendeu uma labor intelectual voltada para a constante re-criação do mundo – segundo ela um artefato humano – dentro do seu habitat natural, o planeta Terra. Ela morreu em 1975.

I. Diagnóstico da Modernidade

Hannah Arendt e Leonardo Boff compartilham um diagnóstico muito semelhante a propósito da Modernidade. A era moderna, que cientificamente teve seus começos entre os séculos XVI e XVII, está, segundo o pensador brasileiro, dominada pelo paradigma ainda vigente da dominação e da conquista, se rege pelo tipo de racionalidade instrumental-analítica e um ídolo norteia seu percurso: o progresso indefinido, cuja equação assegura que riqueza mais poder equivale à felicidade para o maior número. Com Descartes, o homem acreditou ser o dono e o senhor da natureza, em vez de ser mais um na corrente da vida. Segundo Bacon, fundador do método científico moderno experimental, o homem deve “tratar a natureza como o inquisidor trata o seu inquirido: torturá-lo até que entregue todos os seus segredos”, e nem Hobbes, nem Locke, nem Rousseau, nem Kant, formuladores do pacto social que ainda subjaz no ordenamento das nossas sociedades, incluíram a natureza ou a Terra nas suas reflexões, pois não suspeitavam que tanto elas como a vida em geral pudessem algum dia estar ameaçadas pela mão do homem. Este é, para Leonardo Boff, o grande equívoco de todo o projeto da Modernidade: erguido sob valores falsos, de conquista e dominação, desconsiderou a Terra, dando por descontado que ela iria para sempre oferecer recursos, bens e serviços e seria ilimitada em sua resiliência. Assim, o progresso subjugou até destruir culturas ancestrais, como a dos Guaranis, Maias, Quéchuas, Mapuches, Incas e Astecas, assim como outras da África e da Ásia, com a falsa promessa, nunca cumprida, de fazer participar tais povos da pretendida riqueza dos novos tempos. Desta forma, sem desprezar aspectos inegavelmente positivos na medicina, na locomoção ou nas comodidades domésticas, entre outros, Boff denuncia que a espécie humana, mediante a tecnociência 

ocupou 83% da superfície do planeta, depredando seus bens escassos e modificando a base físico-química de sua infraestrutura ecológica. O consumo humano ultrapassou em 30% a capacidade de reposição dos bens e serviços naturais produzidos pela Terra [e] gases de efeito estufa, acumulados nos quatro séculos de industrialização, estão provocando o aquecimento global do planeta (BOFF, 2012, p. 73).

Arendt, como Boff, parte da hybris, ou seja, a desmedida à que chegou o conhecimento técnico moderno ao ponto de fabricar bombas atómicas capazes de terminar com toda a vida orgânica na Terra. Arendt abre sua reflexão com o significado do lançamento do satélite artificial Sputnik em 1957. Surpreendentemente, e de acordo com ela, a reação que seguiu a esse fato histórico inegável não foi a do orgulho diante do alcance do domínio tecnológico humano, mas a de um alívio por ter encontrado uma saída daquilo que estava sendo considerado uma prisão. Hannah Arendt distingue na sua obra entre mundo, o artifício humano que separa a existência dos homens do ambiente meramente animal, e a Terra, que é “a própria quintessência da condição humana, e a natureza terrestre”, o habitat que proporciona a vida que liga o homem aos outros organismos vivos. À vista disso, esta autora se pergunta: a emancipação e a secularização promovidas pela era moderna, desembocarão no repúdio da Terra, “Mãe de todas as criaturas sob o firmamento”? No ponto em que as “verdades” da ciência moderna podem comprovar-se matematicamente e tecnologicamente, mas não se prestam mais à expressão do pensamento e do discurso comum, a hora pode ter chegado na qual já não possamos pensar e falar sobre aquilo que somos capazes de fazer. Neste cenário, e acredito que seria difícil sustentar que não seja já o nosso, Arendt, em 1958 escreveu:

Se for comprovado o divórcio entre o conhecimento (no sentido moderno de conhecimento técnico [know-how] e o pensamento, então passaríamos a ser, sem dúvida, escravos indefesos, não tanto de nossas máquinas quanto de nosso conhecimento técnico, criaturas desprovidas de pensamento à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível, por mais mortífera que seja (ARENDT, 2014, p. 4).

Leonardo Boff se preocupa por deixar claro nos seus artigos, livros e conferências que a humanidade e a Terra não são entes separados, mas formam uma única entidade complexa. Sem maiores preocupações com a tradição bíblica, a obra deste teólogo contempla o seguinte pressuposto, verdadeiro alfa e ômega da sua reflexão: “não estamos apenas sobre a Terra, mas fazemos parte dela; somos Terra que sente, pensa, ama e cuida” (BOFF, 2018, p. 32). De acordo com Boff, este é o sentido positivo e irrenunciável da planetização, que contrapõe ao termo globalização, cujo significado é apenas econômico. Nesta sequência, devem ser mencionados três documentos que chegaram para emoldurar um pensamento já formado: a oficialização da nomenclatura Mãe Terra pelas Nações Unidas, no dia 22 de abril de 2009, e a Carta da Terra do ano 2000 – uma iniciativa da ONU, desenvolvida pela sociedade civil –, que junto a Encíclica do Papa Francisco de 2015, Laudato Si, oficializaram a expressão Casa Comum, com o objetivo de tornar transparente a profunda unidade da espécie humana com o seu habitat natural.

Ao velho paradigma da dominação e da conquista (razão instrumental), Leonardo Boff contrapõe uma cosmologia de transformação e de libertação sob o novo paradigma do cuidado (razão sensível). Boff encontra seu fundamento filosófico em Ser e tempo de Martin Heidegger, para quem a realidade recebe seu verdadeiro sentido através da preocupação inquieta do cuidado. O filósofo alemão inspirou-se na Ética a Nicômaco e na Retórica de Aristóteles para desenvolver a ideia de que “o cuidado é o modo de ser primeiro de todo ser humano em sua relação para com o mundo, e não somente uma orientação particular e interior da alma, como aparecia nos autores cristãos”. O cuidado coloca o homem como ser-no-mundo, é a estrutura originária do Dasein – da existência humana – e portanto, ser homem, ser mulher, implica estar constituído de cuidado. Nas palavras do próprio Heidegger: “o cuidado significa um fenômeno ontológico-existencial básico” (HEIDEGGER, 2012, p. 261 apud BOFF, 2012, p. 53). Com efeito, o ser humano é capaz de cuidar porque ele já é cuidado na sua estrutura originária básica. Porque precisou e recebeu um cuidado natural e objetivo, por parte de um “deus” ou de algum outro, o ser humano é capaz, como projeto ético assumido conscientemente, de cuidar de si mesmo e dos outros na qualidade de valor e propósito pessoal, social e planetário. Desta forma, o cuidado passa de dado natural a dado cultural. Isto, observa Boff fazendo a análise de Heidegger, pressupõe levar a sério a fragilidade e a vulnerabilidade como dados primeiros do homem, ser que está “lançado no mundo” e continuamente exposto a riscos. Assim sendo, a condição humana exige o cuidado, que Heidegger define como um existencial, uma preocupação para o presente e para o futuro, não apenas de si, mas do outro e da vida. Para Boff,

“cuidado é não permitir que o desespero e o desamparo tolham o sentido da alegria de viver, pois, de qualquer forma, jamais poderemos deter o curso irrefreável da morte, hospedada dentro da vida desde o seu primeiro momento de existência” (BOFF, 2012, p. 63).

A humanidade do ser humano se deixa resumir na combinação entre cuidar e ser cuidado. 

“Desta compreensão do cuidado, enquanto natureza do ser humano no mundo e na história, emerge a dimensão ética, que não se deriva do cuidado. O próprio cuidado é sinônimo de ética e do ético no sentido clássico do ethos grego, como cuidado da casa e de todos os que nela habitam, seja a casa individual, seja a Casa Comum, que é o planeta Terra” (idem, p. 65).

Do ponto de vista científico, Boff salienta que o cuidado já estava presente há 3,8 bilhões de anos, quando a matéria alcançou o grau de complexidade e organização que permitiu a emergência da vida na Terra. Na linguagem do autor, “a primeira bactéria com cuidado singularíssimo dialogou quimicamente com o entorno, logrou um equilíbrio dinâmico que lhe possibilitou sobreviver e continuar a evoluir.” (idem, p. 43). Desde uma perspectiva quântica, sublinha o teólogo, esta foi uma possibilidade entre tantas outras, mas foi essa contingência realizada a que deu lugar ao nosso mundo e não a outro. Nesta narrativa, com a aparição do ser humano, o cuidado ganhou há sete ou nove milhões de anos uma qualidade nova: passou de um processo ecológico a um propósito consciente e tornou-se “amor, reconhecimento e comunhão. […] Desta forma o cuidado entra na definição do próprio ser humano como existência-no-mundo-com-os-outros, aberto à totalidade do Ser, ao futuro e à morte” (idem, p. 43-44). 

No intuito de refundar o pacto natural, Leonardo Boff denuncia a quebra do contrato entre a Terra e a humanidade. Os homens, explica, criaram um mundo próprio, exilaram-se da Terra, sua casa, e estabeleceram com ela uma relação de troca, meramente comercial e extrativa. O pacto social resultante desta automutilação considera os humanos como únicos seres de direito, esquecendo o direito à vida dos outros seres que habitam o planeta e os direitos da Mãe Terra. Boff entende que a consequência deste movimento 

foi a solidão, a perda de raízes e de conexão com os outros seres humanos, centrados somente sobre si mesmos. […] Para resgatar a conexão com a Terra faz-se mister articular o pacto social com o pacto natural, de forma que os elementos naturais sejam reconhecidos em seus direitos e sejam igualmente considerados cidadãos. A democracia, então, será sociocósmica; uma democracia da Terra, como o sonham milhões de povos andinos (idem, p. 86).

Hannah Arendt, na sua fenomenologia da vita activa, faz uma reflexão que presta apoio às palavras de Boff. Segundo a autora, o trabalho [labor] e a obra [work] sempre se confundiram historicamente, porém não são a mesma coisa. A condição humana do trabalho é a vida e inclui todas aquelas atividades cujo propósito básico é atender às necessidades próprias das funções biológicas mais elementares do homem. O ser humano precisa comer, beber, vestir, dormir e, ademais, ganhar o pão, isto é, participar do processo coletivo de produção material e, assim, conseguir o cumprimento dos bens mais básicos. Tem também que preservar a espécie, reproduzindo-a, e, para tanto, tem que gerar filhos. Cansado, ao final do dia precisa de repouso, mas no dia seguinte o processo recomeça. A atividade humana do trabalho compartilha com as funções biológicas da pessoa e da natureza uma categoria que define as três por igual: a categoria do eterno retorno cíclico. As atividades incluídas no nome genérico de trabalho não têm outro objetivo do que o de sustentar, preservar, perpetuar, ajudar e periodicamente recuperar as energias perdidas; sua origem reside no fato de que o homem é um ser corporal que possui um instinto de conservação e precisa exercê-lo. 

Aquilo que é produzido pelo trabalho não perdura, sequer nem está destinado a perdurar. Paradoxalmente, as coisas que menos duram são as mais necessárias durante o processo da vida. Logo, precisamos voltar a produzi-las. Trabalho, descanso, recuperação das energias, trabalho. Comer, assimilar uma parte do que foi ingerido, expulsar o resto, e comer de novo. Este é o ciclo vital dos homens, um círculo que jamais é concluído, até que a morte chega, uma linha que passa sempre pelos mesmos pontos e que sempre volta ao ponto de partida. O trabalho não produz algo permanente, pois seus produtos são consumidos pelo processo da vida, e devem ser re-produzidos continuamente. Eles não têm identidade nem independência, e seu significado deriva do seu lugar no processo vital. Os produtos do trabalho são bens de consumo. 

O trabalho e o consumo são duas etapas do sempre repetido ciclo da vida biológica. Esse ciclo é sustentado pelo consumo, e a atividade que proporciona os meios para o consumo é o trabalho. De modo que a sociedade de consumo é a sociedade do animal laborans. Mesmo necessário, o trabalho é fútil, pois seus produtos não podem originar um mundo “objetivo” em que qualquer um possa se instalar permanentemente. Ademais, do momento em que seus movimentos estão ditados pelo processo da vida, o trabalho não requer muita iniciativa ou pensamento. Ao contrário da atividade da obra [working], que termina quando o objeto está acabado e pronto para ser acrescentado ao mundo comum de coisas, “a atividade do trabalho [laboring] move-se sempre no mesmo círculo prescrito pelo processo biológico do organismo vivo, e o fim de suas ‘fadigas e penas’ só advém com a morte desse organismo” (idem, p. 121, grifos no original). É por isso, afirma Arendt, que muitas ferramentas antigas puderam ser substituídas, no mundo moderno, por máquinas que, ainda com seu processo singular, combinaram-se bem com o próprio processo do trabalho. 

Sob o nome genérico de obra, a autora inclui todas aquelas atividades com as quais o homem produz objetos duráveis a partir do material natural, desde simples objetos de uso até as obras de arte. À diferença do trabalho, que produz bens consumíveis, e da ação, que não produz algo tangível, a obra produz “obras” e “objetos”. Um objeto possui uma relativa independência em relação a seu criador e precisa ser tratado de uma maneira específica. Diferentemente dos bens de consumo, ou produtos do trabalho, os objetos produzidos pela obra têm a pretensão de durar e de não serem absorvidos do momento da sua aparição. Além disso, “embora o uso esteja vinculado à deterioração desses objetos, a deterioração não é o destino destes últimos, no mesmo sentido em que a destruição é o fim intrínseco de todas as coisas destinadas ao consumo. O que o uso desgasta é a durabilidade” (idem, p. 170). Os objetos, feitos para serem utilizados, possuem a nova dimensão de oferecerem resistência ao homem (ob-jecta) e de estabelecerem-se no mundo. Para dizê-lo de um modo diferente, se não são usados, não se “evaporam” facilmente, pois eles possuem sua própria “vida” e podem sobreviver à indiferença ou à negligência humanas. Resistentes à passagem do tempo, às vezes os produtos da obra não são apreciados tanto pelo serviço que oferecem quanto por sua capacidade de duração. Inversamente, utilizando-os, também nós somos utilizados por eles e pelo mundo que eles criam. Desde que os produtos da obra têm a capacidade de constituir um mundo de aparências, são-lhes feitas algumas exigências, isto é, espera-se que eles sejam bonitos e agradáveis à vista, debate-se sobre seu estilo, são datados e incorporados à história pessoal e coletiva, e são procuradas formas de preservá-los e mantê-los. Assim, não é pouco frequente depositar sentimentos nos objetos, coisa não tão habitual quando a relação é com os bens de consumo. Em consequência, a atividade da obra corresponde à condição humana da mundanidade. Com cada objeto durável o homem constrói um ambiente, um meio, e incrementa a distância entre ele e a natureza. Correlacionado, o mundo provê o homem do sentimento de continuidade no tempo: pelo hábito de ver, mais ou menos, as mesmas coisas cada dia, se faz consciente de ser ele mesmo um dia apôs o outro. O mundo substitui o conceito cíclico do tempo da natureza pelo retilíneo, que é o distintivo do ser humano (nasce, vive e morre). Em outras palavras, “contra a subjetividade dos homens afirma-se a objetividade do mundo feito pelo homem” (idem, p. 171). De acordo com Arendt (idem, p. 195-196, grifo nosso), 

o que está em jogo não é, naturalmente, a instrumentalidade como tal, o emprego de meios para atingir um fim, mas antes a generalização da experiência da fabricação, na qual a serventia e a utilidade são estabelecidas como critérios últimos para a vida e para o mundo dos homens. Essa generalização é inerente à atividade do homo faber porque a experiência dos meios e do fim, como está presente na fabricação, não desaparece com o produto acabado, mas prolonga-se até o destino final deste último, que é o de servir como objeto de uso. A instrumentalização de todo o mundo e de toda a Terra, essa ilimitada desvalorização de tudo o que é dado, esse processo de crescente ausência de significado no qual todo fim é transformado em um meio e que só pode ser interrompido quando se faz do próprio homem o amo e senhor de todas as coisas, não provém diretamente do processo de fabricação; pois, do ponto de vista da fabricação, o produto acabado é um fim em si mesmo, uma entidade independente e durável, dotada de existência própria, tal como o homem é um fim em si mesmo na filosofia de Kant. Somente na medida em que a fabricação fabrica principalmente objetos de uso o produto acabado novamente se torna um meio, e somente na medida em que o processo vital se apodera das coisas e as utiliza para seus fins é que a instrumentalidade limitada e produtiva da fabricação se transforma na instrumentalização ilimitada de tudo o que existe.

Para Arendt, o drama do mundo moderno é o de ter-se transformado numa sociedade de animal laborans, que destrói tudo o que cria em vez de construir para a duração. Embora sujeito de maneira limitada à lógica dos meios e dos fins, o homo faber da era moderna, entre os séculos XVII e XIX, era capaz de criar e de estabelecer um mundo. A novidade do animal laborans no século XX é a de levar ao extremo essa mesma lógica, que já não é a da criação duradoura mas a da destruição constante, num império do efêmero no qual a segurança de qualquer tipo deixou de existir.  Isto termina por colocar em perigo o mundo e a vida humana neste planeta, que também podem acabar por serem consumidos. Arendt coloca o acento na extensão que a esfera da necessidade – o natural, o biológico, isto é, o meramente cíclico – experimentou no mundo moderno. Portanto, se, como escreve no seu Diário filosófico (cf. 2006, p. 541), a natureza do homem estivesse descoberta no animal laborans, isso significaria o final do humanismo, pois este teria alcançado o seu fim.

II. Rumo a um novo pacto

Urge, pois, uma mudança importante em forma de refundação do vínculo do ser humano com o mundo e com a Terra. Para Boff, o cuidado deve substituir a dominação em uma nova cosmologia que em vez de anular as diferenças, as acolha num biorregionalismo que valorize cada território. Não é verdade, denuncia o autor, que o homem seja apenas um ser de necessidades e de desejo de acumulação ilimitada, mas “um ser criativo, com fome de beleza, de comunhão e de espiritualidade”. O sentido de um ecodesenvolvimento deve encontrar o seu sujeito não na mercadoria, não no mercado, o setor privado ou o Estado, mas nos “seres humanos, tomados pessoal e coletivamente, e os demais seres vivos nas suas múltiplas dimensões. Em decorrência disso, Boff é partidário de um decrescimento econômico – ou “acrescimento” –, que garanta a sustentabilidade ambiental e a equidade social, que reduza a importância do quantitativo em favor da qualidade de vida para o maior número, preservando os bens e os serviços que serão necessários as futuras gerações. Urge pensar global e a longo prazo. Para tanto, se faz necessária a construção de uma democracia integral na qual o indivíduo se transforme num “cidadão-sujeito” empoderado, isto é, dono do seu desenvolvimento pessoal, mas também do coletivo; que coopere com os outros em vez de competir e concorrer contra eles; e que se autoeduque continuamente para exercer a cidadania junto com o seus concidadãos. Desta maneira se desenvolverá a práxis, ou seja, “esse movimento dialético entre a conversão do conhecimento em ação transformadora e a conversão transformadora em conhecimento”. Essa conversão permite que não mude apenas a realidade, mas também o sujeito. Para Boff, é imperativo superar o reducionismo da visão mecanicista para “assumir a cultura da complexidade, da corresponsabilidade e do cuidado”, através de três eixos: a sociedade sustentável, a democracia socioecológica e a educação libertadora. Em diálogo com os antropólogos chilenos, Jorge Maturana e Francisco Varela, com o pensador francês da complexidade, Edgar Morin, ou com o cosmólogo norte-americano Brian Swimme – os quais afirmam que o humano é um ser de socialidade, cooperação e convivialidade –; em diálogo também com a física quântica de Niels Bohr e Werner Heisenberg, Leonardo Boff reafirma a lei fundamental do processo cosmogênico:

Tudo tem a ver com tudo em todos os pontos e em todos os momentos; tudo está inter-relacionado, e nada existe fora dessa panrelacionalidade. Portanto, nada existe justaposto ou desarticulado. Senão que as coisas estão de tal modo interconectadas, que formam um incomensurável sistema (BOFF, 2018, p. 202).

Junto ao filósofo brasileiro, radicado na França, Michel Löwy, a utopia para a qual aponta Boff é a de um ecosocialismo que se inscreve na lógica global das coisas e é sua expressão histórico-social. Assim visto, o ecosocialismo transformaria num projeto político aquilo que a natureza prescreve em seu dinamismo interno, numa visão consciente do mundo e numa ética de solidariedade, cooperação e inclusão (cf. LÖWY, 2014, p. 63ss apud BOFF, 2018, p. 202). Boff não tem interesse algum em resgatar nenhuma utopia maximalista vinda do passado, nenhuma daquelas que custaram tantas vidas para nada, mas acredita com Shakespeare que o ser humano está feito de sonhos e, através do “princípio-esperança” de Ernst Bloch como guia norteador, pensa e age de acordo com o “viável possível” teorizado por Paulo Freire, ou seja, de acordo com aquelas utopias minimalistas que no dizer do pedagogo, fazem a sociedade “menos malvada e tornam menos difícil o amor”. Assim, para Boff, na sua perspectiva ecoteológica, 

crer significa romper com o mundo da pura razão, da funcionalidade das instituições e da lógica linear, para as quais não há e não deve haver surpresas. Crer é abrir espaço para o imprevisto, para a magia e para o “milagre” de que as coisas podem, de repente, mudar e ganhar outra configuração que abre um horizonte de esperança para a vida humana (BOFF, 2018, p. 254). 

Leonardo Boff compartilha com Hannah Arendt uma ética da responsabilidade em relação ao mundo e à Terra.  Para a pensadora, a faculdade da ação tem sua raiz ontológica no fato da natalidade, que é para ela o milagre salvador do mundo. O nascimento de um ser humano marca a aparição de um ser irrepetível, único, dotado da liberdade e da capacidade de atuar de forma imprevisível. “O fato de o homem ser capaz de agir – escreve Arendt – significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável” (ARENDT, 2014, p. 222). Arendt mostra-se convencida de que só a plena experiência da capacidade para introduzir novos começos pode conferir ao mundo fé e esperança; essa esperança que é para Boff “mais do que uma virtude entre outras; é um motor que temos dentro de nós e que alimenta todas as demais virtudes, lançando para frente, suscitando novos sonhos de uma sociedade melhor e a coragem de realiza-los” (BOFF, 2018, p. 101).

Referências bibliográficas

ARENDT, Hannah. Diario filosófico. Barcelona: Herder, 2006.

______. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.

BOFF, Leonardo. O cuidado necessário. Petrópolis: Vozes, 2012.

______. Brasil: Concluir a refundação ou prolongar a dependência. Petrópolis: Vozes, 2018.

As mulheres, o nascimento e a natalidade em Hannah Arendt | por Camila Külkamp*

Hannah Arendt foi a única “filósofa” que pude estudar “formalmente” na minha graduação em Filosofia na Universidade Federal do Pará, que conclui em março de 2019. Coloquei a palavra “filósofa” em aspas, pois, mesmo que eu quisesse estudar uma filósofa no curso, Arendt não costumava afirmar que se reconhecia enquanto tal. Se considerava mais uma teórica política, e não se sentia aceita nos círculos dos filósofos, como afirmou para a entrevista com Günter Gaus em 1964.

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Hannah Arendt e sua mãe, Martha

E a palavra “formalmente” também é destacada, porque cito aqui apenas as referências bibliográficas das disciplinas obrigatórias oferecidas pelos professores e professoras do meu curso. Desde o início da minha graduação já percebia o campo da filosofia brasileira como majoritariamente masculino e europeu, e me senti determinada em dar visibilidade para as mulheres que fizeram filosofia em nossa história. Tive que estudar as obras das filósofas, muitas vezes de difícil acesso, em momentos extraclasse, sem orientação docente. Desse modo, decidi partir das condições que me foram dadas, tentei aliar as reflexões filosóficas da única “filósofa” (também proveniente da Europa) que estudei na minha graduação com os debates feministas.

Comecei minha pesquisa buscando saber o que Hannah Arendt escreveu acerca das mulheres. Partindo de comentários polêmicos que a pensadora dirigiu aos movimentos de mulheres de sua época, busquei analisar em meu trabalho o que Arendt registrou sobre o tema, seja em seus ensaios em que a pensadora abordou variados aspectos da história da vida de Rosa Luxemburgo e de Karol Blixen, assim como a resenha que fez sobre a questão da emancipação feminina em que comentou a obra de Alice Rühle-Gerstel, como também o livro que escreveu sobre a vida de Rahel Varnhagen.

Mas para entender por que Arendt escreveu sobre as mulheres da maneira que fez, tive que abordar também variados aspectos da sua filosofia política. Escolhi apresentar no trabalho os conceitos de nascimento e de natalidade da autora, expostos tanto em sua tese sobre o conceito de amor em Santo Agostinho, quanto em obras posteriores que revelam em pormenores a teoria política arendtiana. Entendo ser importante questionar acerca da coincidência que podemos levantar: que além de Arendt escrever sobre a história de vida de grandes mulheres, ela tem como conceito principal de sua filosofia a natalidade, conceito este, que pode nos remeter, à primeira vista, ao trabalho reprodutivo das mulheres.

Este percurso teórico foi delineado com vistas a possibilitar, no último capítulo do meu trabalho, a criação de uma breve leitura contemporânea de Arendt acerca do nascimento político das mulheres. Nesta última parte, busco apresentar uma breve leitura contemporânea do posicionamento de Arendt acerca do nascimento político das mulheres, e as dificuldades implicadas neste nascimento que foram expostas no material apresentado nos dois capítulos anteriores. Meu intuito é explorar o que Arendt escreveu sobre as mulheres, apresentar tensões e conflitos teóricos em relação aos conceitos de nascimento e natalidade, e contribuir para as relações que podem ser realizadas entre as reflexões de Hannah Arendt com as teorias políticas feministas contemporâneas.

Concluindo, confesso que não foi nada fácil realizar esta pesquisa, pelo esforço que tive em manter o foco e não fugir muito do escopo do trabalho. Comento também a ampla bibliografia internacional de teóricas feministas que produzem com base na filosofia arendtiana, e que por vezes, ainda são de difícil acesso no Brasil e sem tradução.

Meu trabalho foi o primeiro em toda a história do curso de filosofia da UFPA que abordou um tema relacionado com as mulheres e os debates feministas. Entendo que a conclusão principal foi averiguar que Arendt não estava alheia à questão da identidade política das mulheres na sua época, ao contrário do que poderíamos pensar por suas declarações polêmicas. E que além das insuficiências expostas pelas críticas que podem ser dirigidas a Arendt, a sua filosofia política apresenta uma ampla abertura para muitas reflexões significativas que as teorias políticas feministas buscam debater na contemporaneidade.

Mas meu objetivo mesmo era fazer com que a única “filósofa” estudada no curso chegasse um pouco mais perto dos anseios levantados pelos debates feministas, em prol da liberdade e tendo como fundamento a construção de uma crítica contra a subordinação das mulheres. Anseios que inúmeras estudantes, como eu, apresentam ao buscarem se reconhecer na filosofia.

Para ler o trabalho de Camila Külkamp, clique aqui.


*Camila Külkamp é bacharela em Direito (CESUPA) e Advogada (OAB-PA), especialista em Filosofia da educação (UFPA), licenciada em Filosofia (UFPA), mestra em Ciência Política (UFPA) e doutoranda em Filosofia (UFSC).

Crítica a tabloide, livro de Nobel alemão ecoa ambiente atual de fake news | Folha de S. Paulo

Romance de Heinrich Böll com maior repercussão, ‘A Honra Perdida de Katharina Blum’ (1974) é reeditado no Brasil

GUILHERME MAGALHÃES

A atmosfera de medo que reinava na Alemanha Ocidental da década de 1970 colocou os alemães diante do seu maior teste como sociedade desde o regime nazista.

Corriam os ataques a bomba e sequestros do grupo terrorista RAF (Fração do Exército Vermelho, na sigla em alemão), também conhecido como Grupo Baader-Meinhof.

Para combatê-los, o governo social-democrata de Willy Brandt (1969-74) apelou para métodos controversos como grampeamento indiscriminado de telefones e encarceramentos sem julgamento.
Acusações sem evidências reverberavam na imprensa marrom, com destaque para o tabloide Bild, ainda hoje o mais vendido na Europa.

“Se, em descrições de certas práticas jornalísticas, surgirem semelhanças com as do jornal Bild, isso não se deu por acaso ou premeditação; foi, isso sim, inevitável”, diz Heinrich Böll pouco antes de dar início à narrativa de “A Honra Perdida de Katharina Blum”.

Fora de catálogo há quatro décadas no Brasil, o breve romance publicado em 1974 é agora reeditado pela Carambaia. Nele, a jovem protagonista do título passa a ser investigada após se envolver com um suspeito de terrorismo.

Pior do que a polícia será o assédio do tabloide chamado Jornal na trama —uma clara sátira do Bild—, que conduz uma devassa na vida privada de Katharina, fazendo uso de informações falsas e entrevistas distorcidas. A narrativa se desenrola com ritmo de thriller e tintas carregadas da ironia de Böll, que se viu, ele próprio, alvo do Bild.

Em janeiro de 1972, o escritor, em artigo na Der Spiegel, principal revista semanal alemã, criticou a cobertura leviana feita pelo tabloide. O texto foi reação a uma manchete do Bild do mês anterior: “O bando Baader-Meinhof continua matando”, referindo-se a um roubo a banco no qual não havia evidências de ligação com o grupo.

Böll foi acusado de ser mentor intelectual dos extremistas. Terminou o mesmo ano laureado com o Nobel de Literatura —prêmio que, segundo a imprensa ultraconservadora, era dado apenas a radicais esquerdistas.

A publicação de “A Honra Perdida”, dois anos depois, reafirmou a imagem de Böll como “consciência da nação”, “por sua sensibilidade humana e forma direta de se manifestar na esfera pública alemã sobre os problemas no próprio país e no mundo”, afirma à Folha Paulo Soethe, professor da Universidade Federal do Paraná especialista em literatura alemã e autor do posfácio desta reedição.

Com o romance, avalia Soethe, “Böll lançou mão de uma arma de legítima defesa, desferiu uma bordoada em seus detratores e os pôs para correr. Junto à opinião pública alemã e mundial, ele venceu o conflito com o jornal Bild e com as forças ultraconservadoras de seu país”.

A adaptação para o cinema, dirigida em 1975 por Volker Schlöndorff e Margarethe von Trotta, ajudou a ampliar a repercussão do livro.

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Conhecido por sua atuação política no Partido Social-Democrata e depois no Partido Verde, o escritor soube como poucos descrever a psique alemã do pós-guerra. Exemplares são os romances “Pontos de Vista de um Palhaço” (1963) e “O Anjo Silencioso”, escrito no final da década de 1940, mas publicado apenas em 1992, sete anos após a morte de Böll. Ambos foram publicados no Brasil pela Estação Liberdade.

Para Soethe, “A Honra Perdida” veio em boa hora, “dada a premência de sua questão central também no contexto brasileiro contemporâneo”.

“O grito de protesto de Böll contra a imprensa marrom na Alemanha, a qual o difamava naquele momento por manifestações suas em favor de que acusados de terrorismo fossem tratados como cidadãos de um Estado de Direito, era também um grito contra a banalização da atividade jornalística.”

A HONRA PERDIDA DE KATHARINA BLUM
Preço R$ 55,90 (136 págs.)
Autor Heinrich Böll
Editora Carambaia
Tradução Sibele Paulino

FSP 26.2.2019

Análise: Reação à revolução iraniana desembocou em extremismo | Folha de S. Paulo

Ascensão dos aiatolás há 40 anos acirrou disputa de poder entre sunitas e xiitas no Oriente Médio

PATRÍCIA CAMPOS MELLO

Há 40 anos, o aiatolá Rouhollah Khomeini desembarcava em Teerã, depois de um longo exílio, e era recebido por cerca de 5 milhões de iranianos exultantes com o fim da ditadura do xá Reza Pahlevi e a alvorada da Revolução Islâmica.

Khomeini encheu a população iraniana de esperanças, ao derrubar um déspota que aterrorizava opositores com sua política secreta, com apoio explícito dos EUA.

Mas esta mesma revolução está no cerne do surgimento de vários grupos terroristas, como Al Qaeda e Estado Islâmico, e inúmeras guerras por procuração entre Irã e Arábia Saudita, como os conflitos na Síria e no Iêmen. A revolução xiita no Irã gerou uma reação no mundo sunita que acabou em extremismo e violência.

O rompimento entre muçulmanos sunitas e xiitas remonta ao século 7º, a partir de uma divergência sobre a sucessão do profeta Maomé. Para os sunitas, o sucessor de Maomé deveria ser escolhido por um shura, um conselho consultivo com membros da comunidade muçulmana. Líderes de Medina se reuniram e escolheram Abu Bakr, sogro de Maomé.

Já os xiitas defendiam que o sucessor de Maomé fosse seu parente ou descendente direto. Queriam que o escolhido fosse Ali, primo do profeta casado com sua filha, Fátima.

Mas foi somente após a revolução de 1979 que essa divisão entre sunitas e xiitas se transformou em uma disputa de poder entre iranianos e sauditas pelo domínio no Oriente Médio.

Khomeini implantou no Irã uma teocracia islâmica xiita. Ele tinha a ambição de exportar sua revolução para outros países, o que inspirou medo em diversos ditadores da região. Apesar de Khomeini liderar uma revolução xiita, a reação da Arábia Saudita, sunita, levou ao surgimento de facções extremistas sunitas como a Al Qaeda e o EI.

Khomeini subiu ao poder pedindo morte à América, que apoiava o xá e suas políticas opressoras e tinha longo histórico de interferência no Irã, desde que a CIA ajudou a derrubar o então premiê Mohammed Mossadegh em 1953, após ele nacionalizar a indústria do petróleo.

Mas Khomeini pregava também que as monarquias do Golfo não eram governos legítimos e praticavam um islamismo americanizado.

A revolução foi vista pela Arábia Saudita como uma ameaça existencial. E a monarquia saudita sofreu um segundo abalo naquele ano de 1979, com um ataque liderado por um extremista sunita à grande mesquita de Meca, que a forçou a ceder espaço para os clérigos conservadores.

O governo no país sempre dependeu da divisão de poder entre a família real e os clérigos wahhabitas, que seguem os ensinamentos de Muhammad ibn Abd al-Wahhab, líder religioso do século 18 que pregava uma volta aos primórdios do islã. Trata-se de uma versão muito mais conservadora do islamismo sunita, que considera os xiitas hereges.

Frente à revolução iraniana e ao atentado em Meca, houve um recrudescimento conservador na Arábia Saudita e uma ofensiva para espalhar a versão saudita do islamismo pelo mundo. Os sauditas gastaram bilhões de dólares construindo milhares de escolas islâmicas que ensinavam a vertente mais radical de islamismo sunita, especialmente no Paquistão.

A grande oportunidade surgiu com a invasão soviética do Afeganistão. Era o momento de os sauditas defenderem um povo muçulmano e, assim, ganharem influência com outros países islâmicos. Para os americanos, ainda durante a Guerra Fria, a lógica era conter o avanço dos soviéticos.

Sauditas e americanos passaram a financiar os mujahideen no Afeganistão, extremistas religiosos apoiados pelo Paquistão, que combatiam os soviéticos.

A Arábia Saudita encorajou milhares de sauditas a irem lutar a jihad no Afeganistão para ajudar seus irmãos muçulmanos. Um dos sauditas que atenderam ao chamado foi Osama bin Laden.

Foi ele o ideólogo e líder da Al Qaeda, responsável pelos ataques de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, que mataram quase 3.000 pessoas.

E o Estado Islâmico é uma dissidência da Al Qaeda, que nasceu a partir do braço desta no Iraque. Mais uma vez, o extremismo se alimentou do sectarismo, da rivalidade entre sunitas e xiitas exacerbada desde a revolução iraniana e alimentada com a interferência americana.

Os EUA invadiram o Iraque em 2003 e derrubaram o presidente sunita do país, Saddam Hussein. O governo provisório americano demitiu da administração e das polícias ou prendeu milhares de integrantes do partido Baath, de Saddam, que se tornaram um exército de desempregados sunitas nas ruas — muitos se radicalizaram.

Saddam foi substituído por um governo xiita que oprimia a população sunita, minoritária no Iraque. Essa população recebeu de braços abertos, pelo menos no início, o Estado Islâmico.

A dinâmica sectária e disputa de poder entre Irã e Arábia Saudita se repete nas guerras da região.

Na Síria, onde já morreram mais de 500 mil pessoas, o ditador Bashar al-Assad, que é alauita —uma vertente do xiismo—, é apoiado por Teerã. Os grupos rebeldes, muitos deles extremistas, eram bancados pelos sauditas, entre outros.

No Iêmen, sauditas lutam contra os houthis, xiitas que também contam com o apoio do Irã.

Entenda a revolução

Jan.77 Intelectuais e ativistas publicam cartas abertas criticando o acúmulo de poder nas mãos do xá Reza Pahlevi

Jan.78 Cinco manifestantes morrem após repressão a protestos contra a difamação do aiatolá Khomeini, no exílio

Fev.78 Cerimônias em homenagem aos mortos são realizadas em várias cidades

8.set.78 Um dia após o xá declarar lei marcial no país, ao menos cem são mortos em um protesto em Teerã

3.out.78 Khomeini é deportado pelo Iraque, a pedido do xá, e vai para a França. Ali, consegue acesso à mídia

10.dez.78 Milhões vão às ruas pela saída do xá e pela volta de Khomeini

16.jan.79 O xá e a família partem para o Egito, alegando férias. Nunca mais voltaria ao Irã

1º.fev.79 Aiatolá é recebido por 5 milhões em Teerã

4.fev.79 Khomeini indica um novo premiê. Nos dias seguintes, as Forças Armadas declaram neutralidade e o governo ligado ao xá entra em colapso

30.mar.79 Referendo decide que o Irã deve se tornar uma República islâmica

4.nov.79 Estudantes protestam na Embaixada dos EUA em Teerã e impedem a saída dos funcionários, que ficariam presos até jan.81

2.dez.79 Nova Constituição, que coloca um líder religioso como autoridade máxima, é aprovada em referendo

FSP 11.2.2019

O que fazer com filósofos do passado que se revelaram racistas e sexistas? |Folha de S. Paulo

Mais útil que proibir é indagar se eles seriam preconceituosos ainda hoje, afirma autor

JULIAN BAGGINI

[RESUMO] Autor vê equívoco no julgamento de pensadores que manifestaram preconceitos arraigados em épocas menos esclarecidas e defende que mais útil é indagar se seus modos de pensar os levariam a ser preconceituosos hoje.

Admirar os grandes pensadores do passado virou um risco moral.

Elogie Immanuel Kant e alguém pode lembrar a você que ele acreditava que “a humanidade alcança sua maior perfeição na raça dos brancos” e que “os índios amarelos possuem talento escasso”. Louve Aristóteles e você terá que explicar como é possível que um sábio genuíno possa ter pensado que “o macho é por natureza superior, e a fêmea, inferior; o homem é o governante, e a mulher, a súdita”.

Escreva um tributo a David Hume, como fiz recentemente, e será criticado por louvar alguém que escreveu em 1753-54: “Tendo a suspeitar que os negros e todas as outras espécies de homens, em geral, sejam naturalmente inferiores aos brancos”.

Parece que estamos diante de um dilema. Não podemos simplesmente descartar como insignificantes os preconceitos inaceitáveis do passado. Mas, se pensarmos que a defesa de opiniões moralmente repreensíveis desqualifica alguém de ser visto como grande pensador ou líder político, não restará praticamente ninguém da história.

O problema não desaparece se excluirmos os homens brancos do establishment. O racismo era comum no movimento sufragista feminino de ambos os lados do Atlântico.

A sufragista americana Carrie Chapman Catt disse: “A supremacia branca será fortalecida pelo sufrágio feminino, e não enfraquecida”. Emmeline Pankhurst, sua companheira britânica na luta, virou defensora acirrada do colonialismo, negando que ele fosse “algo a ser criticado ou do que se envergonhar” e insistindo que, em vez disso, “é algo grandioso sermos os herdeiros de um império como o nosso”.

Tanto o sexismo quanto a xenofobia têm sido comuns no movimento sindicalista, tudo isso em nome da defesa dos direitos dos trabalhadores — dos trabalhadores homens e não imigrantes, que fique claro.

Mas é um equívoco pensar que ideias racistas, sexistas ou intolerantes de outras maneiras automaticamente desqualifiquem uma figura histórica como objeto de admiração. Qualquer pessoa que não consiga admirar figuras assim revela uma profunda falta de entendimento sobre como nossas mentes são condicionadas socialmente, mesmo as maiores delas.

Pelo fato de o preconceito parecer tão evidentemente errado, essas pessoas não conseguem imaginar como alguém possa deixar de enxergá-lo, a não ser que seja degradado em termos morais.

A indignação dessas pessoas supõe de modo arrogante que elas próprias são tão virtuosas que jamais seriam tão imorais, mesmo quando todos a sua volta fossem incapazes de enxergar a injustiça. Já deveríamos saber que isso não é verdade.

A lição mais perturbadora do Terceiro Reich é que ele foi apoiado em grande medida por cidadãos comuns que teriam levado vidas isentas de culpa, não fosse o acaso de terem vivido naqueles tempos particularmente tóxicos.

Qualquer confiança que possamos sentir no fato de que nós não faríamos o mesmo é infundada, já que hoje temos consciência do que as pessoas na época não sabiam. Tolerar o nazismo hoje é inimaginável, porque não é preciso imaginação alguma para entender exatamente quais foram suas consequências. Por que tantas pessoas acham impossível acreditar que qualquer chamado gênio possa ter deixado de enxergar que seus preconceitos eram irracionais e imorais?

Uma razão disso é que nossa cultura parte de uma premissa equivocada e muito arraigada: que o indivíduo é um intelecto humano autônomo, independente do ambiente social. Um conhecimento mesmo superficial de psicologia, sociologia ou antropologia jogaria por terra essa ilusão cômoda.

O ideal do Iluminismo de que todos somos capazes e devemos pensar por nós mesmos não deve ser confundido com a fantasia hiper-iluminista de que todos somos capazes de pensamento independente. Nosso pensamento é moldado por nosso ambiente, de maneiras profundas das quais nós mesmos não temos consciência. Aqueles que se negam a aceitar que são tão limitados por essas forças quanto todas as outras pessoas têm delírios de grandeza intelectual.

Quando uma pessoa está arraigada em um sistema imoral, torna-se problemático atribuir responsabilidade individual. Isso é perturbador, porque todos acreditamos com firmeza na ideia de que o lócus da responsabilidade moral é o indivíduo autônomo. Se levássemos a sério o condicionamento social de crenças e práticas repulsivas, o medo é que todos seriam perdoados e que nos restaria um relativismo moral intolerável.

Mas o receio de que seríamos incapazes de condenar o que mais precisa ser condenado é infundado. A misoginia e o racismo não são menos repulsivos pelo fato de serem produtos de sociedades, tanto ou mesmo mais do que de indivíduos.

Desculpar Hume não quer dizer tolerar o racismo; desculpar Aristóteles não é desculpar o sexismo. Racismo e sexismo nunca foram aceitáveis: as pessoas apenas acreditavam, de maneira equivocada, que fossem.

Aceitar isso não significa passar por cima dos preconceitos do passado. Tomar consciência de que mesmo pensadores como Kant e Hume foram produtos de seu tempo serve para nos lembrar de que as maiores mentes também podem ficar cegas diante de erros e males, se estes forem bastante onipresentes.

Isso também deve nos levar a questionar se os preconceitos que vêm à tona em suas observações mais infames não podem estar à espreita, em segundo plano, em outras partes de seu pensamento. Boa parte da crítica feminista feita à filosofia de “homens brancos mortos” é dessa natureza, argumentando que a misoginia evidente é só a ponta de um iceberg muito mais insidioso. Em alguns casos isso pode ser verdade, mas não devemos presumir que seja. Muitos pontos cegos são locais, deixando o campo geral de visão perfeitamente claro.

A defesa da misoginia de Aristóteles apresentada por Edith Hall, estudiosa dos clássicos da literatura grega e romana, constitui um exemplo rematado de como salvar um filósofo de seu próprio pior lado.

Em lugar de julgar Aristóteles pelos critérios de hoje, Hall argumenta que um teste melhor seria indagar se os fundamentos de seu modo de pensar o levariam a ser preconceituoso hoje. Dada a abertura de Aristóteles a evidências e à experiência, não há dúvida de que, se vivesse hoje, não seria necessário persuadi-lo de que as mulheres estão em pé de igualdade com os homens.

Também Hume se rendia à experiência, de modo que, se vivesse hoje, é provável que não suspeitaria nada de negativo em relação aos povos de pele escura. Em suma, não precisamos olhar além dos fundamentos da filosofia deles para entender o que estava errado no modo como eles os aplicaram.

Uma razão pela qual podemos relutar em perdoar os pensadores do passado é o receio de que desculpar os mortos nos obrigará a desculpar os vivos. Se não pudermos criticar Hume, Kant ou Aristóteles por seus preconceitos, como podemos criticar as pessoas que estão sendo cobradas pelo movimento #MeToo por atos que cometeram em círculos sociais em que esses atos eram completamente normais? Afinal, Harvey Weinstein não seguiu tipicamente a cultura do “teste do sofá” de Hollywood?

Há, no entanto, uma diferença muito importante entre os vivos e os mortos. Os vivos podem entender como seus atos foram errados, podem reconhecer o fato e demonstrar remorso. Quando seus atos forem crimes, podem enfrentar a Justiça. Não podemos nos dar ao luxo de sermos tão compreensivos com os preconceitos do presente quanto somos com os do passado.

Para transformar a sociedade, é preciso levar as pessoas a enxergar que é possível superar os preconceitos com que foram criadas. Não somos responsáveis por criar os valores distorcidos que moldaram a nós e a nossa sociedade, mas podemos aprender a assumir a responsabilidade por como lidamos com eles de agora em diante.

Os mortos não têm essa oportunidade; logo, é inútil desperdiçar nossa indignação castigando-os. Temos razão em lamentar as iniquidades do passado, mas culpar indivíduos por coisas que fizeram em tempos menos esclarecidos, aplicando os padrões de hoje, é duro demais.

Julian Baggini, escritor e filósofo britânico, é autor de “O que os Filósofos Pensam” (ed. Ideias e Letras, 2005) e “How the World Thinks: A Global History of Philosophy” (2018).

Texto originalmente publicado no site Aeon; tradução de Clara Allain.

Ilustríssima / FSP 27.1.2019

Hannah Arendt’s answer to Paul Berman on the contemporary American Left | Tablet Magazine

The latest entry in a Tablet feature analyzing the state of the American left, inspired by Paul Berman’s series of essays on the subject. Here, a ‘Dissent’ editor asks, ‘patriotism, what’s it good for?’

By Tim Shenk

“If you want to understand American politics today, the single best source might be page 334 of Hannah Arendt’s masterpiece, The Origins of Totalitarianism. No, that’s not because Donald Trump is plotting a fascist coup. He’s not nearly smart enough to pull it off. Even if he were, Arendt’s description of life under totalitarian rule is easily the least insightful part of the book. Her real genius was for explaining why liberal societies fall apart. It’s a question that should be on all of our minds.

Now, on to page 334. After running through a brief history of modern Europe, Arendt’s narrative brings her to one of the most puzzling questions of the interwar period: Why were vulgar demagogues peddling ridiculous doctrines able to turn millions of people against the liberal order? She had, by then, already discussed the psychology of what she sniffily referred to as “the mob,” and now turned her attention to totalitarianism’s attractions for the elite. What especially interested Arendt, who turned 27 the year Hitler became chancellor of Germany, was its appeal for younger intellectuals.

Her answer centered on the failings of the status quo. “What the defenders of liberalism and humanism overlook,” she observed, was that it had become “easier to accept patently absurd propositions than the old truths which had become pious banalities.” Why was that? Well, people had eyes. They could see that elites who proclaimed themselves champions of civilization were “parading publicly virtues which [they] not only did not possess in private and business life, but actually held in contempt.” Everybody knew the whole thing was a joke, except for the great men who bought into their own propaganda. Confronted with this hypocrisy, “it seemed revolutionary to admit cruelty, disregard of human values, and general amorality because this at least destroyed the duplicity upon which the existing society seemed to rest.” Sure, the alternative was farcical, but at least everyone would be able to stop mouthing the same old lies, and that offered a kind of liberation.”

Para ler o artigo completo, clique aqui.

Hannah Arendt em Lisboa | Publico

Por Rui Tavares, para o “Publico”

Uma das coisas em que insisto perante os alunos é que não vejam as pessoas de que falamos — sobretudo e se forem autores, pensadores, artistas, políticos, cientistas e outros homens e mulheres célebres — como se fossem nomes numa enciclopédia.

Quando dou aulas, uma das coisas em que insisto perante os alunos é que não vejam as pessoas de que falamos — sobretudo se forem autores, pensadores, artistas, políticos, cientistas e outros homens e mulheres célebres — como se fossem nomes numa enciclopédia, mas antes como mulheres e homens que viveram como os humanos vivem: foram jovens, entusiasmaram-se, hesitaram, tiveram medo, apaixonaram-se e zangaram-se uns com os outros, e também não viam as pessoas à sua volta como figuras prontas a entrar nos livros de história mas como gente do seu tempo por quem tinham amor ou ódio, respeito ou amizade, antipatia ou empatia.

Como todas as banalidades que é preciso não ter medo de repetir, esta guarda dentro de si duas verdades importantes. A primeira é que embora nem todos os autores escrevam para o seu tempo, a nenhum é dado viver fora do seu tempo; e a realidade com que viveu é muitas vezes essencial para entender as ideias que teve, porque as manteve, ou porque as abandonou. A segunda, mais importante ainda, é que também a nós, mesmo quando nos deprimimos, assustamos ou desorientamos, nos é dada a oportunidade de contribuir com qualquer coisa de bom e útil para a humanidade. É bom não esquecer essa oportunidade e não deixar de a usar quando se apresenta.

Quando chegou a Lisboa, em janeiro de 1941, Hannah Arendt, que nascera em 1906, já tinha sido brevemente presa pelos nazis em 1933, era refugiada desde os 27 anos e apátrida desde os 31 anos. Tinha acabado de casar pela segunda vez, com o poeta Heinrich Blücher, e escapara in extremis da França ocupada com o seu marido e a sua mãe. Quem conseguiu passá-los, através do recurso a documentos falsos, foi um jovem de vinte e poucos anos que tinha lutado pelos republicanos na Guerra Civil de Espanha e que viria a ser o grande economista e historiador das ideias Albert Hirschman.

Repito: toda esta gente não era para Hannah Arendt (nem uns para os outros) a “filósofa” ou o “economista”. Eram a Hannah, o Heinrich e o Albrecht, mais um humano dos tempos sombrios a precisar de um visto e de uma passagem de navio para o exílio.

Hannah Arendt chegou a Lisboa sob a nuvem escura da notícia da morte do seu amigo Walter Benjamin, que se suicidara uns meses antes na fronteira entre a França e a Espanha, ao acreditar (supõe-se que erradamente) que não o deixariam passar até Lisboa. Os dois amigos não viriam a encontrar-se na capital portuguesa, nem nunca mais, mas Hannah e Heinrich transportavam consigo o manuscrito das Teses sobre a filosofia da história que Benjamin escrevera no início do ano anterior e que lhes enviara por segurança, pedindo que não fosse publicado (provavelmente, até que pudesse rever o texto). Das poucas coisas que sabemos que Hannah Arendt fez em Lisboa, além de lutar contra a depressão e esperar por papéis e passagens para Nova Iorque, foi ler o ensaio de Walter Benjamin, que ela e Heinrich decidiram tomar a responsabilidade de fazer publicar quando chegassem aos EUA.

Hannah Arendt falava pouco e quase nunca escreveu sobre a sua passagem por Lisboa (um dos seus discípulos, o diplomata brasileiro Celso Lafer, lembra-se de ela lhe dizer que descobrira conseguir ler e entender os títulos dos jornais em português — Arendt era uma boa latinista, além de falar francês, o que lhe facilitava a compreensão da nossa língua). Mas não devemos daí inferir que essa passagem tenha sido pouco importante. Foi-o para ela e deve ser para nós.

A passagem de Hannah Arendt não foi só parte do percurso que lhe salvou a vida e que lhe permitiu depois escrever algumas das obras mais importantes da teoria e filosofia política do nosso tempo — algumas das quais, como As Origens do Totalitarismo, estão permanentemente a precisar de serem redescobertas. Em meu entender, a influência da estada paralisante em Lisboa, do seu peso emocional, do seu desespero surdo, sente-se principalmente no extraordinário ensaio Nós Refugiados, que Arendt viria a publicar em 1943 e que deveria ser leitura comum pelo menos nas escolas europeias. Por sua vez, é o ter entendido, na sua pele de pessoa refugiada e apátrida, que a cidadania é o primeiro dos direitos — “o direito a ter direitos”, como ela lhe chamava — que esteve na origem da sua cada vez mais relevante filosofia dos direitos humanos.

Para nós, é importante lembrar Hannah Arendt precisamente como cidadãos, na dupla acepção da palavra: como cidadãos de Lisboa e de Portugal, e como humanos neste planeta, sujeitos de inalienáveis direitos à dignidade, à liberdade e a participar nas decisões que nos dizem respeito.

Hoje, segunda 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos, às onze da manhã, a Câmara Municipal de Lisboa inaugurará um memorial a Hannah Arendt próximo ao lugar onde ela viveu na nossa capital, na Rua da Sociedade Farmacêutica 6b. O memorial ficará no larguinho, que espero que um dia se venha a chamar Largo Hannah Arendt, da esquina entre a Rua da Sociedade Farmacêutica e o Conde Redondo (declaração de interesses: a proposta do memorial foi do LIVRE, mas apraz-me dizer que foi aprovada por unanimidade na Assembleia Municipal de Lisboa, e rapidamente implementada pela Vereação da Cultura de Lisboa).

Pelo que fica dito atrás, esta comemoração no espaço físico de Lisboa não é só um ato de justiça perante o passado; é um ato de esperança no futuro. A partir de agora, a cidade de Lisboa lembrará a quem ali se quiser sentar, descansar e refletir, as últimas palavras de Hannah Arendt em Nós Refugiados: “A Europa estilhaçou a sua alma quando deixou que os seus mais vulneráveis fossem perseguidos e escorraçados”. Não o esqueçamos nunca, para que não voltemos a perder a nossa alma.

O retorno dos brioches | Folha de S. Paulo

JOÃO PEREIRA COUTINHO, para a Folha

Assisto aos protestos de Paris e confesso que, pela primeira vez na minha pobre existência conservadora, não são as chamas reais que me assustam. São as chamas metafóricas que, nos jornais e na TV, condenam os protestos dos “coletes amarelos”.

Distinção importante: que na destruição em curso há banditismo em larga escala, ninguém duvida. São casos de polícia, não de política.

O problema, porém, está no tom geral com que o comentariado lida com o assunto: os “coletes amarelos” são subgente, não trabalhadores desesperados pela crise, pela pobreza ou pelo garrote fiscal em que vivem. O ideal, aliás, era Emmanuel Macron não os escutar e, se possível, prender todo mundo numa nova Bastilha.

Essa arrogância não é nova. É moda. Sessenta e dois milhões de americanos votaram em Trump? São selvagens, todos eles. Dezessete milhões votaram no Brexit? São selvagens, todos eles. Dez milhões votaram em Marine Le Pen?

Precisamente: todos eles. No pensamento mágico do comentariado, se insultarmos as pessoas com afinco, elas acabarão por desaparecer da paisagem.

É contra essa cegueira que Robert Eatwell e Matthew Goodwin se insurgem. Nos últimos tempos, por razões acadêmicas e pessoais, tenho lido o que posso sobre o fenômeno populista. Mas nenhum livro é remotamente comparável a “National Populism: The Revolt Against Liberal Democracy”.

O principal objetivo dos autores é acabar com as fantasias (ou “mitos”, nas suas palavras) de que o populismo não passa de um fenômeno conjuntural, que rapidamente será ultrapassado.

Na cartilha otimista, a crise financeira de 2008 abalou as sociedades e fez brotar da terra os Trumps, os Farages, as Le Pens. A crise dos refugiados só agravou o problema.

Mas, assim que a economia melhorar e os refugiados forem integrados nos países de acolhimento, os populistas e seus seguidores voltarão ao buraco negro de onde vieram.

Essa fantasia só faria sentido se, antes de 2008, o “ethos” populista (uma celebração da “vontade geral” popular contra elites distantes ou corruptas) não estivesse já à solta pelo DNA das democracias.

Obviamente, estava. Sempre esteve, pelo menos desde finais do século 19. O que agora presenciamos é apenas o auge de uma tensão que faz parte da própria história da democracia: a tensão entre as massas e os seus representantes.

Por outras palavras: a democracia liberal só existe porque existiu um entendimento prévio de que o povo é parte do projeto, não o seu dono absoluto.

Como escrevia James Madison no “Federalista” (artigo nº 10), só o governo representativo pode impedir o poder destrutivo das “facções”. O povo vota; o representante, usando o seu melhor juízo, decide em nome do povo.

Esse compromisso, com acidentes de percurso, durou até meados do século 20, quando a Europa resolveu suicidar-se pela segunda vez. A ordem liberal que surgiu das ruínas entendeu que a paz tinha um preço: transferir para instituições transnacionais e supranacionais o essencial da decisão política, econômica e até cultural.

Azar: o compromisso foi quebrado e as massas, agora, apresentam a conta do prejuízo. Que fazer?

Concordo com Eatwell e Goodwin: tem havido entre as elites liberais uma espécie de “recusa da literalidade” (expressão minha, não deles). Essa recusa significa não aceitar que metade dos eleitorados nacionais (contas por alto) desejam realmente o que desejam: menos imigração; fronteiras reforçadas; devolução de poderes para a nação; respeito pelas suas identidades culturais contra agendas “politicamente corretas” que são vistas como uma imposição abusiva aos seus “modos de vida”.

Os votos não são apenas de protesto; são de afirmação. O que significa que as democracias liberais só podem sobreviver se estabelecerem um novo compromisso entre os “bárbaros” e os “iluminados”.

Um exemplo? A imigração. Como argumentam os autores, nenhuma sociedade aceita passivamente uma política de portas abertas. Mas nenhuma sociedade é sustentável, argumento eu, com trancas à porta, ao contrário do que Hillary Clinton sugeriu recentemente aos europeus para espanto dos seus companheiros de estrada.

Uma política de imigração realista tem em conta critérios de integração cultural, sustentabilidade econômica, necessidades laborais e viabilidade política. Negar isso é suicídio.

Saber se o suicídio será cometido pelas elites políticas tradicionais do Ocidente, eis uma pergunta a que o futuro dará resposta.

Mas, pelo tom dos comentários, é impossível não escutar a voz (apócrifa) de Marie Antoinette. As massas não tem pão? Que comam brioches.

E elas comeram.

João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

FSP 11.12.2018

Aos hesitantes | Bertold Brecht

Tradução: André Vallias

Você diz:
A coisa vai mal para nós.
A escuridão aumenta. As forças decrescem.
Agora, após termos trabalhado tantos anos, estamos
Em situação mais difícil do que no início.

O inimigo, porém, está mais forte do que nunca.
Suas forças parecem maiores. Tomou aspecto invencível.
Cometemos erros, sim, não dá mais para negar.
Nosso número diminui.
Nossos bordões estão em desordem. Uma parte das nossas palavras
O inimigo distorceu até ficarem irreconhecíveis.

O que está errado agora daquilo que dissemos
Alguma coisa ou tudo?
Com quem podemos contar ainda? Somos os restantes, arrancados
Do fluxo dos viventes? Vamos permanecer
Não compreendendo mais ninguém e por ninguém compreendidos?

Precisamos ter sorte?

É o que você pergunta. Não
Espere outra resposta além da sua.

1935

A Holocaust survivor tells her story | DW Documentary

Margit Meissner conta aos jovens sobre o Holocausto e sua própria fuga dos nazistas.

por DW Documentary

Margit Meissner, de 96 anos, sobreviveu ao Holocausto e agora está fazendo tudo que pode para garantir que ele nunca seja esquecido. Meissner é uma voluntária muito ativa no Museu Memorial do Holocausto, de Washington D.C. e regularmente encontra jovens para contar sobre o genocídio dos judeus e como escapou por pouco dos nazistas, há mais de 75 anos. Margit Meissner também participa de um projeto do fotógrafo alemão Luigi Toscano, viajando pelo mundo, tentando documentar o maior número possível de sobreviventes do Holocausto. Não foi fácil para ela concordar com o pedido do fotógrafo – apenas ouvir a língua alemã ainda invoca memórias traumáticas para ela.

Vídeo em inglês.