Análise: Reação à revolução iraniana desembocou em extremismo | Folha de S. Paulo

Ascensão dos aiatolás há 40 anos acirrou disputa de poder entre sunitas e xiitas no Oriente Médio

PATRÍCIA CAMPOS MELLO

Há 40 anos, o aiatolá Rouhollah Khomeini desembarcava em Teerã, depois de um longo exílio, e era recebido por cerca de 5 milhões de iranianos exultantes com o fim da ditadura do xá Reza Pahlevi e a alvorada da Revolução Islâmica.

Khomeini encheu a população iraniana de esperanças, ao derrubar um déspota que aterrorizava opositores com sua política secreta, com apoio explícito dos EUA.

Mas esta mesma revolução está no cerne do surgimento de vários grupos terroristas, como Al Qaeda e Estado Islâmico, e inúmeras guerras por procuração entre Irã e Arábia Saudita, como os conflitos na Síria e no Iêmen. A revolução xiita no Irã gerou uma reação no mundo sunita que acabou em extremismo e violência.

O rompimento entre muçulmanos sunitas e xiitas remonta ao século 7º, a partir de uma divergência sobre a sucessão do profeta Maomé. Para os sunitas, o sucessor de Maomé deveria ser escolhido por um shura, um conselho consultivo com membros da comunidade muçulmana. Líderes de Medina se reuniram e escolheram Abu Bakr, sogro de Maomé.

Já os xiitas defendiam que o sucessor de Maomé fosse seu parente ou descendente direto. Queriam que o escolhido fosse Ali, primo do profeta casado com sua filha, Fátima.

Mas foi somente após a revolução de 1979 que essa divisão entre sunitas e xiitas se transformou em uma disputa de poder entre iranianos e sauditas pelo domínio no Oriente Médio.

Khomeini implantou no Irã uma teocracia islâmica xiita. Ele tinha a ambição de exportar sua revolução para outros países, o que inspirou medo em diversos ditadores da região. Apesar de Khomeini liderar uma revolução xiita, a reação da Arábia Saudita, sunita, levou ao surgimento de facções extremistas sunitas como a Al Qaeda e o EI.

Khomeini subiu ao poder pedindo morte à América, que apoiava o xá e suas políticas opressoras e tinha longo histórico de interferência no Irã, desde que a CIA ajudou a derrubar o então premiê Mohammed Mossadegh em 1953, após ele nacionalizar a indústria do petróleo.

Mas Khomeini pregava também que as monarquias do Golfo não eram governos legítimos e praticavam um islamismo americanizado.

A revolução foi vista pela Arábia Saudita como uma ameaça existencial. E a monarquia saudita sofreu um segundo abalo naquele ano de 1979, com um ataque liderado por um extremista sunita à grande mesquita de Meca, que a forçou a ceder espaço para os clérigos conservadores.

O governo no país sempre dependeu da divisão de poder entre a família real e os clérigos wahhabitas, que seguem os ensinamentos de Muhammad ibn Abd al-Wahhab, líder religioso do século 18 que pregava uma volta aos primórdios do islã. Trata-se de uma versão muito mais conservadora do islamismo sunita, que considera os xiitas hereges.

Frente à revolução iraniana e ao atentado em Meca, houve um recrudescimento conservador na Arábia Saudita e uma ofensiva para espalhar a versão saudita do islamismo pelo mundo. Os sauditas gastaram bilhões de dólares construindo milhares de escolas islâmicas que ensinavam a vertente mais radical de islamismo sunita, especialmente no Paquistão.

A grande oportunidade surgiu com a invasão soviética do Afeganistão. Era o momento de os sauditas defenderem um povo muçulmano e, assim, ganharem influência com outros países islâmicos. Para os americanos, ainda durante a Guerra Fria, a lógica era conter o avanço dos soviéticos.

Sauditas e americanos passaram a financiar os mujahideen no Afeganistão, extremistas religiosos apoiados pelo Paquistão, que combatiam os soviéticos.

A Arábia Saudita encorajou milhares de sauditas a irem lutar a jihad no Afeganistão para ajudar seus irmãos muçulmanos. Um dos sauditas que atenderam ao chamado foi Osama bin Laden.

Foi ele o ideólogo e líder da Al Qaeda, responsável pelos ataques de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, que mataram quase 3.000 pessoas.

E o Estado Islâmico é uma dissidência da Al Qaeda, que nasceu a partir do braço desta no Iraque. Mais uma vez, o extremismo se alimentou do sectarismo, da rivalidade entre sunitas e xiitas exacerbada desde a revolução iraniana e alimentada com a interferência americana.

Os EUA invadiram o Iraque em 2003 e derrubaram o presidente sunita do país, Saddam Hussein. O governo provisório americano demitiu da administração e das polícias ou prendeu milhares de integrantes do partido Baath, de Saddam, que se tornaram um exército de desempregados sunitas nas ruas — muitos se radicalizaram.

Saddam foi substituído por um governo xiita que oprimia a população sunita, minoritária no Iraque. Essa população recebeu de braços abertos, pelo menos no início, o Estado Islâmico.

A dinâmica sectária e disputa de poder entre Irã e Arábia Saudita se repete nas guerras da região.

Na Síria, onde já morreram mais de 500 mil pessoas, o ditador Bashar al-Assad, que é alauita —uma vertente do xiismo—, é apoiado por Teerã. Os grupos rebeldes, muitos deles extremistas, eram bancados pelos sauditas, entre outros.

No Iêmen, sauditas lutam contra os houthis, xiitas que também contam com o apoio do Irã.

Entenda a revolução

Jan.77 Intelectuais e ativistas publicam cartas abertas criticando o acúmulo de poder nas mãos do xá Reza Pahlevi

Jan.78 Cinco manifestantes morrem após repressão a protestos contra a difamação do aiatolá Khomeini, no exílio

Fev.78 Cerimônias em homenagem aos mortos são realizadas em várias cidades

8.set.78 Um dia após o xá declarar lei marcial no país, ao menos cem são mortos em um protesto em Teerã

3.out.78 Khomeini é deportado pelo Iraque, a pedido do xá, e vai para a França. Ali, consegue acesso à mídia

10.dez.78 Milhões vão às ruas pela saída do xá e pela volta de Khomeini

16.jan.79 O xá e a família partem para o Egito, alegando férias. Nunca mais voltaria ao Irã

1º.fev.79 Aiatolá é recebido por 5 milhões em Teerã

4.fev.79 Khomeini indica um novo premiê. Nos dias seguintes, as Forças Armadas declaram neutralidade e o governo ligado ao xá entra em colapso

30.mar.79 Referendo decide que o Irã deve se tornar uma República islâmica

4.nov.79 Estudantes protestam na Embaixada dos EUA em Teerã e impedem a saída dos funcionários, que ficariam presos até jan.81

2.dez.79 Nova Constituição, que coloca um líder religioso como autoridade máxima, é aprovada em referendo

FSP 11.2.2019