O que fica? Fica a língua materna.

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Revolution and Freedom | Hannah Arendt

Editado por Adriano Correia, para os Cadernos de Filosofia Alemã.

My subject today is, I’m afraid, almost embarrassingly topical. Revolutions have become everyday occurrences since, with the liquidation of imperialism, one people after the other has risen “to assume among the powers of the earth the separate and equal station to which the laws of Nature and of nature’s God entitle them”. Just as the most lasting result of imperialist expansion was the export of the European nation-state idea to the four corners of the earth, so the liquidation of imperialism under the pressure of nationalism has led to the export, as it were, of the idea of revolution all over the globe. For all the revolutions, no matter how violently anti-Western their rhetoric may be, stand under the sign and have fallen into the tradition of revolution in the West. This state of affairs was preceded by the series of revolutions after the First World War on the European continent itself. Since then, and even more markedly after the Second World War, nothing seems more certain than that a revolutionary change of the form of government, as distinguished from a mere alteration of administration, will follow defeat in war between the great powers – short, of course, of total annihilation. But it is of some importance to note that even before technological developments made wars between the great powers literally a life and death struggle, and hence self-defeating, at least for the time being, wars had become politically a matter of life and death.

Para ler o artigo completo, clique aqui.

Godard recita Arendt

Monólogo (em francês com legendas em inglês) “A natureza do totalitarismo” // texto de Hannah Arendt, recitado por Jean-Luc Godard

Texto publicado na coletânea de ensaios “Compreender”

Walter Benjamin está morto

Hannah Arendt-Bluecher / 317 West 95th Street / Nova York, N. Y.

17 de outubro de 1941

Caro Scholem:

Miriam Lichtheim deu-me seu endereço e envia saudações. Embora eu acredite que mesmo sem esse empurrão, eu também teria me encorajado a escrever para você, devo admitir que foi um impulso muito eficaz. Wiesengrund disse-me que lhe enviou um relatório detalhado sobre a morte de Benjamin. Eu mesma descobri, quando cheguei aqui, alguns detalhes que não são irrelevantes. Talvez eu não seja muito qualificada para apresentar os fatos, já que dificilmente havia contado com um desfecho como esse, de modo que, por várias semanas após sua morte, ainda acreditei que tudo era boato de emigrantes. E isso apesar do fato de que precisamente nos últimos anos e meses fomos amigos íntimos e nos víamos regularmente. No início da guerra, estávamos todos juntos durante o verão em um pequeno ninho francês perto de Paris. Benji estava em excelente forma, tinha acabado partes do seu Baudelaire e pensava – com razão, na minha opinião – que estava prestes a fazer grandes coisas. A eclosão da guerra o assustou imediatamente. No primeiro dia da mobilização, ele fugiu de Paris para Meaux por medo de ataques aéreos. Meaux era um famoso centro de mobilização, com um aeroporto de grande importância militar e uma estação ferroviária que constituía um ponto estratégico para toda a concentração de tropas. A consequência foi, é claro, que desde o primeiro dia os alarmes aéreos não cessaram e Benji voltou rapidamente, assustado. Ele chegou bem a tempo de ser trancado em um campo de internamento. No acampamento temporário de Colombes, onde meu marido [Heinrich Blücher] teve longas conversas com ele, ele estava em grande desespero. E isso, claro, por boas razões. Ele imediatamente praticou uma forma peculiar de ascetismo, parou de fumar, deu todo o seu chocolate, recusou-se a se lavar, fazer a barba ou mesmo se mover. Após sua chegada ao último campo, ele não se sentiu tão mal: tinha ao seu redor um grupo de meninos que gostava dele, que queria aprender com ele e que o livrou de todos os tipos de fardos.

Quando ele voltou, em meados de novembro, ficou bastante feliz por ter tido essa experiência. Seu pânico inicial também havia desaparecido completamente. Nos meses seguintes, escreveu as Teses histórico-filosóficas, das quais também lhe enviou, como me disse, uma cópia, e das quais se pode deduzir que estava na trilha de coisas novas. No entanto, ele ficou imediatamente com medo da opinião do Instituto. Você certamente saberá que o Instituto o informou, antes do início da guerra, que seu pagamento mensal não era mais garantido e que ele deveria procurar outra coisa. Isso o entristeceu muito, embora a verdade seja que não estava muito convencido da seriedade dessa afirmação. Mas, em vez de melhorar sua situação, isso tornou tudo ainda mais difícil. Esse medo desapareceu com a eclosão da guerra, mas ele continuou a temer a reação a suas teorias mais recentes e certamente pouco ortodoxas. Em janeiro, um de seus jovens amigos do campo, que por acaso também era amigo ou discípulo de meu marido, suicidou-se. Principalmente por motivos pessoais. Isso o afetou de uma forma extraordinária e em todas as conversas ele apoiou esse menino e sua decisão com veemência verdadeiramente apaixonada. Na primavera de 1940, todos partimos com o coração pesado para o consulado americano, e saímos de lá pesarosos, pois nos foi explicado que teríamos de aguardar entre dois a dez anos pela nossa vez na lista de espera. Nós três começamos a ter aulas particulares de inglês. Nenhum de nós levou isso muito a sério, mas Benji aspirava aprender o suficiente para ser capaz de dizer que não gostava nada do idioma. E ele conseguiu. Seu horror pela América era indescritível, e já então dizem que ele havia comunicado a amigos que preferia uma vida mais curta na França a uma mais longa nos Estados Unidos. Tudo isso terminou rapidamente quando, a partir de meados de abril, todos os internos liberados que tivessem até 48 anos foram submetidos a um exame médico para determinar se estavam aptos para o serviço militar. Esse serviço era, na verdade, apenas mais uma palavra para designar internação para trabalhos forçados e, em comparação com a primeira internação, significava, na maioria dos casos, uma piora. Que eles iriam declarar Benji impróprio estava claro para todos, exceto para ele.

Durante esse tempo, ele ficou muito irritado e me explicou repetidamente que não poderia passar pelo mesmo drama novamente. Então, naturalmente, ele foi declarado impróprio. Independentemente dessa medida, em meados de maio ocorreu a segunda e mais completa internação, da qual você já deve ter ouvido falar. Três pessoas foram milagrosamente poupadas, incluindo Benji. No entanto, em meio ao caos do governo, ele nunca poderia saber se e por quanto tempo a polícia iria cumprir uma ordem do Ministério do Exterior, e se não iria prendê-lo sem mais delongas. Eu mesmo não o via mais a essa altura, porque também tinha sido internada, mas alguns amigos disseram-me que já não se atrevia a sair e que estava em constante estado de pânico. Ele conseguiu sair de Paris com o último trem. Carregava apenas uma pequena pasta com duas camisas e uma escova de dentes. Foi, como você sabe, a Lourdes. Quando saí de Gurs, em meados de junho, também fui para Lourdes e fiquei lá por várias semanas por iniciativa dele. Foi o momento da derrota; alguns dias depois, os trens não estavam mais circulando; ninguém sabia onde as famílias, homens, filhos ou amigos foram deixados. Benji e eu jogamos xadrez de manhã à noite e líamos o jornal nos intervalos, se houvesse um.

Tudo estava muito bem até o momento em que foi proclamado o armistício com a famosa cláusula de extradição. Obviamente, nos sentimos muito piores depois, embora eu não possa dizer que Benji realmente entrou em pânico. Em pouco tempo, ficamos sabendo dos primeiros suicídios em um internato durante a fuga dos alemães, e Benjamin, pela primeira vez, começou a falar comigo repetidas vezes sobre suicídio. Que essa saída era a que restava. Para meu protesto extremamente enérgico de que sempre se tem tempo para isso, ele repetiu de uma forma muito estereotipada que isso nunca poderia ser conhecido e que em nenhum caso deveria-se retardar demais. Por outro lado, estávamos falando sobre a América do Norte. Ele parecia estar mais conformado com essa ideia do que antes. Levou a sério uma carta do Instituto, explicando que todos os esforços estavam sendo feitos para levá-lo para lá. Levou menos a sério, contudo, uma outra declaração, dizendo que iria entrar para o conselho editorial da revista com salário garantido. Aceitou um contrato simulado para lhe fornecer um visto. Estava com muito medo, ao que parece sem motivo, de que, uma vez aqui, eles o deixassem em apuros.

No início de julho saí de Lourdes para ir à la recherche de mon mari perdu [em busca do meu marido perdido]. Benji não estava muito entusiasmado e duvidei por muito tempo se não deveria levá-lo comigo. Mas isso teria sido simplesmente impraticável. Lá ele estava bastante seguro das autoridades locais (com uma carta de recomendação do Ministério do Exterior), não podendo estar mais seguro que em outro lugar. Até setembro, só tive notícias dele por carta. Enquanto isso, a Gestapo estava em seu apartamento e confiscou tudo. Ele me escreveu muito deprimido. Embora seus manuscritos tenham, entretanto, sido recuperados, ele tinha motivos para acreditar que havia perdido tudo.

Em setembro, fomos para Marselha, pois nossos vistos já haviam chegado lá. Benji estava lá desde agosto, já que seu visto chegara em meados daquele mês. Ele também possuía o famoso Transit espanhol e, claro, o português. Quando o vi novamente, seu visto espanhol tinha apenas oito ou dez dias de validade. Na época, não havia esperança de obter um visto de saída. Ele me perguntou desesperadamente o que deveria fazer, se não conseguíssemos obter vistos espanhóis em tempo para que pudéssemos cruzar a fronteira juntos. Disse-lhe e mostrei-lhe que era inútil e que por outro lado devia partir agora, pois os vistos espanhóis àquela altura já não eram renovados. Disse-lhe também que me parecia muito incerto por quanto tempo esses vistos existiriam em geral e que não se deveria correr o risco de que expirassem. Que obviamente o melhor seria nós três irmos juntos, que então ele viesse para Montauban, onde estaríamos, mas que ninguém pudesse assumir a responsabilidade por tudo isso. Ao que ele decidiu partir às pressas. Os dominicanos deram-lhe uma carta de recomendação para um abade espanhol. Isso nos impressionou muito na época, embora fosse totalmente absurdo. – Naquela época, em Marselha, mencionou novamente as intenções de suicídio. –

Você certamente sabe o resto: que ele teve que partir com pessoas que lhe eram completamente desconhecidas; que escolheram o caminho mais longo, que envolvia uma caminhada até a montanha de aproximadamente sete horas; que, por razões inconcebíveis, eles destruíram seus documentos de residência na França e assim impediram de retornar à França; que então chegou à fronteira espanhola apenas vinte e quatro horas após seu fechamento para pessoas sem passaporte nacional – todos nós tínhamos apenas os papéis do consulado americano -; que Benji havia desmaiado várias vezes já na ida; que na manhã seguinte deveriam ser entregues na fronteira com a Espanha e que ele, na noite em que lhes foi concedida, cometeu suicídio.

Quando chegamos a Portbou, meses depois, procuramos em vão seu túmulo: não foi encontrado, em nenhum lugar colocou-se seu nome. O cemitério tem vista para uma pequena baía, diretamente sobre o Mediterrâneo, é esculpido em terraços de pedra; também colocam caixões nessas pedras. É de longe um dos lugares mais fantásticos e bonitos que já vi na minha vida. O Instituto tem o legado, mas, no momento, não se atreve a publicar nada em alemão. Eu me pergunto se, independentemente disso, as Teses histórico-filosóficas não poderiam ser publicadas em Schocken. Ele me deu o manuscrito e o Instituto só o obteve graças a mim.

Caro Scholem, é tudo o que posso dizer-lhe, e o fiz da forma mais escrupulosa e com o mínimo de comentários possível. Para você e sua esposa, saudações calorosas de Monsieur e de mim.

Sua,

Hannah Arendt

Portbou 1940, estación término para Walter Benjamin |Por DOCUMENTOS RNE

Cuando se cumple el 80º aniversario de la muerte de Walter Benjamin, Documentos RNE recrea los últimos momentos del filósofo y pensador alemán de origen judío.

Benjamin, enfermo del corazón y agotado físicamente, escapó de Francia en 1940, huyendo del avance de las tropas nazis. Después de pasar por Marsella para lograr un visado que le permitiera la entrada en Estados Unidos, buscó salir de Francia por la frontera con España. Pero al término de su marcha a través de los Pirineos, la policía española le comunica en Portbou que lo va a deportar de nuevo a Francia. Benjamin morirá esa noche por una sobredosis de morfina, aunque el certificado de defunción hablará de derrame cerebral.

El documental recorre la zona entre Portbou y La Jonquera, escenario del drama de Benjamin y de 400.000 refugiados españoles que solo un año antes habían atravesado los Pirineos en sentido contrario, huyendo de la represión franquista. Al otro lado de la frontera, Antonio Machado fallecerá en Colliure, a una docena de kilómetros de España, víctima también de una huida extenuante. Ambos, Benjamin y Machado, son un símbolo de la persecución y el exilio; de una búsqueda de la libertad que termina en tragedia.

Portbou, asomada al Mediterráneo y sede de una imponente Estación Ferroviaria Internacional, se convierte en este documental en un personaje más, con su memorial Pasajes, de Dani Karavan, cargado de simbolismo sobre el trágico destino de Walter Benjamin.

Portbou 1940, estación término para Walter Benjamin, reconstruye los últimos momentos del pensador alemán a través de los testimonios de Lisa Fittko, una judía antifascista que era el enlace para cruzar la frontera española, y Henny Gurland, compañera de fuga que será testigo presencial de su muerte. Además, incluye las voces de Maximiliano Fuentes, historiador, director de la Cátedra Walter Benjamin de la Universidad de Girona; Jörg Zimmer, presidente del Consejo Asesor de la Cátedra Walter Benjamin; Pilar Carrera, profesora del Departamento de Periodismo de la Universidad Carlos III y autora de Las moradas de Walter BenjaminMiquel Serrano, conservador del Museu Memorial de l’Exili de La Jonquera; Teresa Puig, de la Oficina de Turismo de Portbou; Joan Gubert i Macias, historiador y cronista oficial de Portbou; Jordi Font, director del Mèmorial Democràtic de Barcelona; y Pilar Parcerisas, crítica de arte, guionista de la película La última frontera, sobre el final de Benjamin, y creadora de la fundación Angelus Novus.

Para ouvir o documentário, clique aqui.

Documentos RNE se emite los viernes, de 23 a 24 horas, por Radio Nacional.

FONTE: https://www.rtve.es/radio/20200226/portbou-1940-estacion-termino-para-walter-benjamin/2004712.shtml

Hannah e Walter: um encontro de duas vidas | por Gustavo Racy

Assim como acontece com qualquer personalidade de destaque, também no que diz respeito aos pensadores é comum que nos voltemos aos relatos e registros biográficos. Às vezes o fazemos na tentativa de entender e coadunar melhor a obra com a vida que a produziu, por outras, buscamos suas biografias simplesmente pelo prazer, para entrarmos em contato com outros tempos, em busca do componente real, humano, daqueles a quem conhecemos por meio de pensamentos e teorias. Não raro, o fazemos porque subjaz em nós um pingo de idolatria, uma satisfação pessoal em nos identificarmos com aqueles que nos apaixonaram através de sua escrita, sua arte, seu pensamento. Devemos considerar todas essas relações válidas, contanto que possam ser distinguidas nos objetivos aos quais se servem a leitura. É difícil, por exemplo, evitarmos certo fascínio pela figura de Santo Agostinho quando lemos suas Confissões, um livro tanto autobiográfico quanto magnânimo tratado filosófico. E isso simplesmente porque sabemos, mesmo que inconscientemente, que toda obra é produzida por uma vida.

A relação entre obra e vida foi analisada, entre outros, por Walter Benjamin, filósofo cuja morte cumpre seu octogésimo aniversário este ano, e cuja data de nascimento contemplamos com esta breve reflexão. Dentre os comentadores de sua obra, talvez porque se aprenda desde muito cedo a pensar sobre a relação obra/vida sem que uma justifique a outra, é comum que nos voltemos a seus amigos e interlocutores, buscando no epistolário das relações amistosas indicativos e discussões marginais importantes à consolidação de seu pensamento crítico. É por isso que muitos dentre nós, benjaminianos, não hesitamos em ler suas correspondências com Bertolt Brecht, Gershom Scholem, Greta Adorno, Theodor Adorno, entre outros. É no movimento de formação e vivência de amizades que muito da obra de Benjamin tomou forma, e em grande parte, é por conta destas relações pessoais que seu pensamento foi legado: foram amigos e conhecidos seus como Georges Bataille, Theodor Adorno, Lisa Fitko, Bertolt Brecht e Hannah Arendt que salvaguardaram seus escritos e preservaram sua memória. Neste esforço, uma das relações mais bonitas e honrosas à sua filosofia foi, certamente aquela com Hannah Arendt, a começar por seu texto dedicado a Walter Benjamin e Homens e Tempos Sombrios. E esta amizade merece uma reflexão.

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No momento em que vivemos, a proliferação de governos de cepa fascista ao redor do mundo e o recrudescimento de posturas revivalistas herdeiras do socialismo real, isto é, herdeiras de um extrato mais tradicionalista do comunismo, trazem à tona a necessidade de uma reflexão acerca do pensamento político que Benjamin (um marxista autodeclarado) e Arendt (que negava identificações, embora apontasse aquilo com o qual não se identificava), compartilhavam. Nomeadamente, o esforço em se lançar de cabeça nos fenômenos sócio-históricos na tentativa de compreendê-los em sua origem, isto é, no vernáculo benjaminiano, no movimento que os fez vir-a-ser, que fez com que se tornassem o que são. Não foi por acaso que estes dois pensadores tenham firmado sólida amizade. Ambos estão à margem. “Eles, os refugiados”, são patinhos feios de seus círculos sociais: Benjamin, um marxista à contrapelo, com pendor anarquista, que não dispendeu energia suficiente com a “ditadura do proletariado”; Arendt, uma pensadora de método fenomenológico, descritivo, que parece não tomar posição sobre os eventos que aborda. Ambos judeus que se recusaram a adotar o sionismo ou o Partido Comunista. Ambos independentes, insatisfeitos, de caráter destrutivo.

Arendt e Benjamin passaram pela situação de párias, de apátridas, de alteridade germânica, primeiro e, depois, judaica, ao se refugiarem em França. E ambos foram realocados a posições problemáticas por parte daqueles que os enxergaram unicamente por sua trajetória pessoal. Em um mundo pautado pela lógica da representação realista (seja ela capitalista ou socialista), herdeira maldita do Século XIX, importa, antes, de tudo, a imagem que se possa construir sobre a vida que produz o pensamento. A isso se relegam aqueles cujo pensamento parece ser complexo e, sim, contraditório demais para que seja capturado a serviço de uma pauta ou causa (e o que nos custam as causas, como observou Max Stirner). No lugar do mosaico, da bricolagem, da constelação, da alegoria, o pensamento representacionalista (eis aí um neologismo), fixado na aparência, impõe a demanda pela perspectiva geométrica. Deste modo, enquanto Benjamin se tornou o patinho feio do marxismo, um pensador poético que “tem lá seu valor”, que escreve bonito, mas com cujo pensamento ninguém sabe o que fazer, Arendt se tornou a Bruxa Liberal, amante de nazista, anticomunista e racista. Interessante como seus críticos não deixam de recorrer a uma condição de gênero. À taxação de “amante de nazista” Hannah Arendt é rebaixada a um apêndice de Heidegger, como se sem Martin não houvesse Hannah. Interessante ainda, lembrarmos, em uma época em que falamos tanto sobre “passar o pano”, o quão fácil é condenar alguém que não passa pano para violência de Estado, independente do espectro em que se dê. Benjamin logo se desiludiu com os processos de censura pelos quais passavam os escritores soviéticos e foi um dos primeiros a se posicionar acerca dos Processos de Moscou, enquanto Arendt, a despeito de possíveis erros de diagnóstico, desde cedo de se dedicou a pensar sobre a pautas. De certo modo, este é o limite que se impõe ao reconhecimento de Benjamin como pensador marxista, ao mesmo tempo em que ponto de partida para a condena do pensamento de Arendt.

As acusações atuais contra Arendt e o análogo reconhecimento limítrofe de Benjamin que, apesar de sua grande fama e popularidade acadêmica, permanece de forma mais popular apenas como um autor “citável”, reproduzem uma ontologia neoliberal pautada em um esquema de compensações de débito e crédito, na qual os sujeitos têm, antes de tudo, um preço. O de Arendt e Benjamin sem dúvida não era baixo. “Deixe que raivem os falsos moralistas”, como disse José de Alencar. Críticas são imanentes à história. A amizade Arendt e Benjamin é uma relação emblemática da modernidade, que se estrutura pelo aspecto imagético das interações sociais e se reproduz num esquema de “exclusão por inclusão” (e vice-versa), como permite vislumbrar Giorgio Agamben em Beyond Human Rights, num círculo vicioso de prós e contras, erros e acertos, lucro e prejuízo. No que toca Arendt e Benjamin, tanto faz. Para entender a dimensão de uma amizade que se ergueu, antes de tudo, pela admiração mútua e pela confiança (uma amizade política, portanto), é preciso que nos coloquemos por fora deste círculo; uma tarefa difícil, bem o sabemos, contudo necessária. A lição para isso talvez se apresente pelo próprio Benjamin, em uma carta endereçada a Arendt em 8 de julho de 1940, uma semana antes de seu aniversário, portanto, e poucos meses antes de seu suicídio. Se, como disse Arendt, invocada por Cláudia Perrone-Moises neste mesmo blog, é verdade que desde “que o passado deixou de lançar uma luz sobre o futuro a mente do homem vagueia nas trevas” (Entre o passado e o futuro), na citação de La Rouchefoucauld a amizade entre Arendt e Benjamin é coroada, de forma redentora e para além de bem e mal, como o encontro de duas vidas: “Sua acedia garantiu-lhe a glória por muitos anos na obscuridade de uma vida errante e escondida”. Errantes e obscuros, párias, apátridas, judeus e alemães, estes dois pensadores deram à sua obra o peso de toda uma vida. E na obscuridade da errância, encontraram-se, Walter e Hannah.

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Gustavo Racy é antropólogo, doutor em ciências sociais pela Universidade da Antuérpia, especialista na obra de Walter Benjamin e editor da Sobinfluencia Edições – gustavo.racy@outlook.com

CfP: ‘Critique of Violence’ 100 years later— On the actuality of Walter Benjamin’s violence essay

2021 will mark the centenary of Walter Benjamin’s “Critique of Violence.” Contexto Internacional seeks short contributions on Benjamin in relation to the fast and slow violences of our present moment. Kristina Hinz (Free University of Berlin), Ludmila Franca-Lipke (Free University of Berlin), and Fatima Gabriela Soares de Azevedo (Rio de Janeiro State University) serve as guest editors of the forum. Full call for papers below.

‘Critique of Violence’ 100 years later—
On the actuality of Walter Benjamin’s violence essay

In 1921, Walter Benjamin published, at the age of only 28, his controversial essay ‘Critique of Violence’, representing an account on the republican model of governance in the light of the First World War. Identifying an intrinsic relationship between law and coercion, ‘Critique of Violence’ has become a highly influential text for the discussion on the role of violence in politics.

One hundred years after its original publication, the text has only gained in popularity. Contemporary scholars such as Giorgio Agamben, Slavoj Žižek and Judith Butler continue to engage with the violence essay, and have put forward their own, highly contrasting interpretations of ‘divine violence’ and ‘bare life.’

While the world has seen profound changes since the original publication of ‘Critique of Violence’, both the years 1921 and 2021 share the emergence of authoritarian forces in many countries, coupled with profound social and cultural changes, and economic depression. However, many of today’s most urgent questions and challenges, such as environmental conflicts and the climate crisis, forced migration and displacement, racialized conflicts and state violence, and, last but not least, the marginalization of LGBTIQ+ individuals and the rollback of women’s rights, call into question the actuality of Walter Benjamin’s ‘Critique of Violence’ and its concepts.

We seek to organize a forum of short critical reflections on Walter Benjamin’s ‘Critique of Violence’ 100 years after its original publication. We invite selected scholars in international relations, political theory, philosophy, law and other fields to contribute with pieces of approximately 3,000 words, for possible publication in Contexto Internacional in May of 2021.

We aim to stimulate new conversation on Benjamin’s ’Critique of Violence’ along the following lines, though we are open to other critical themes:
● Gendered and queer perspectives on legal violence: rollback of women’s and LGBTQI+ rights, organization and resistance (for example, the women’s strike).
● ‘Bare life’ in current world politics: refugees, displaced persons and legally marginalized groups.
● Postcolonial and intersectional perspectives on the ‘history of the oppressed’.
● (Racialized) law enforcement violence, resistance and insurgent movements (for example, Mães de Maio, Black Lives Matter)
● ‘Divine violence’ and reflections on ecological crises (for example, climate change, COVID-19 pandemic).
● State and global neoliberalism: urbanism, punitivism and access to essential goods.
● Law and critique of law: limits of the human rights regime and the democratic institutions amid the rise of authoritarian forces.

In order to foster the critical appreciation of this canonical European author, we are particularly interested in approaches that propose perspectives and discuss cases from the Global South.

Given the intention to publish the Forum in 2021, the deadline for submission of abstracts is 15 July 2020. Abstracts should not exceed 300 words and must be made through the Scholar One system: https://mc04.manuscriptcentral.com/cint-scielo

Please identify your abstract as ‘Critique of Violence centenary forum.’

Upon acceptance, the deadline for the submission of the complete article is 15 October 2020.

Guest Editors for this forum:
Kristina Hinz (Free University of Berlin)
Ludmila Franca-Lipke (Free University of Berlin)
Fatima Gabriela Soares de Azevedo (Rio de Janeiro State University)

Editors of Contexto Internacional:
Jimmy Casas Klausen (Pontifical Catholic University of Rio de Janeiro)
Paula Sandrin (Pontifical Catholic University of Rio de Janeiro

O totalitarismo de tempos sombrios: um diálogo entre Doutor Fausto e Origens do totalitarismo |Pedro Ferreira Leite

Hannah Arendt (1987) empresta sua concepção de “tempos sombrios” do poema An die Nachgeborenen (À posteridade), de Bertolt Brecht, para tratar da primeira metade do século XX. Esse período, marcado pelas catastróficas guerras mundiais, pelos horrores do totalitarismo e por um surpreendente desenvolvimento das artes e das ciências, permeou toda a obra legada por Arendt, numa tentativa de compreender os fenômenos brutais que abalaram todo o mundo de maneira irreversível. Como ela nota, muito embora Brecht retrate uma catástrofe pública, não secreta, de desordem e fome, de massacres e assassinos, de cólera contra a injustiça e desespero quando só havia injustiça e não revolta, tudo isto “não era em absoluto visível para todos, nem foi tão fácil percebê-lo; pois, no momento mesmo em que a catástrofe surpreendeu a tudo e a todos, foi recoberta, não por realidades, mas pela fala e pela algaravia de duplo sentido, muitíssimo eficiente, de praticamente todos os representantes oficiais que, sem interrupção e em muitas variantes engenhosas, explicavam os fatos desagradáveis e justificavam as preocupações” (Ibid., p. 7-8). Os “tempos sombrios” assim são porque foram escondidos, por governos invisíveis e por um discurso público que não se preocupa em discutir e entender os eventos humanos, mas escondê-los debaixo do tapete. Nas sombras, o mundo se torna tão dúbio que as pessoas almejam fugir da realidade, deixando de resistir a ela com sua humanidade. Resta, então, voltarmos nossa atenção justamente àquilo que é concreto, real, para compreendermos e, assim, resistirmos aos tempos sombrios.

Em Doutor Fausto (2015), Thomas Mann procura criar “nada menos do que um romance da minha época, disfarçado numa história de vida de artista altamente precária e pecaminosa” (MANN, 2001, p. 35). Assim, retrata, por outra perspectiva, os mesmos tempos sombrios que Hannah Arendt. Na trama de Mann, a história do compositor Adrian Leverkühn é também a história da Alemanha, que faz um pacto com o Demônio para tentar alcançar a grandeza e revolucionar completamente a música — e a História. O pacto fáustico, segundo Mann (2001, p. 29) reinterpretando Goethe, é a “escapatória das dificuldades da crise da cultura, a ânsia por eclosão, a qualquer custo, de um espírito orgulhoso e ameaçado de esterilidade, assim como o paralelismo entre a embriaguez popular fascista e uma euforia danosa desembocando num colapso”. Entendendo “cultura” como a própria tradição humanista alemã, percebe-se que o pacto é resultado de uma crise dos valores do humanismo burguês, dentre os quais se encontram os ideais da Revolução Francesa. Adrian, ao criar seu magnum opus, busca revogar o bom, o nobre, a alegria e a esperança dos princípios humanistas, substituindo-os pela “lamentação” do destino que tomaram estes princípios (MANN, 2015, p. 562).

 

Para ler o texto integral, CLIQUE AQUI.

O fascismo explicado por Jason Stanley

Alfons C. Salellas

    Na primavera de 2018 apareceu nas prateleiras das livrarias do Brasil um ensaio importante, que está fazendo sucesso em todo o mundo, intitulado Como funciona o fascismo, do professor de filosofia da Universidade de Yale, Jason Stanley, publicado pela L&PM de Porto Alegre e traduzido por Bruno Alexander.

    Bem ao início do seu livro, Stanley deixa claras duas coisas. A primeira, que a política fascista, tóxica de qualquer modo, não leva necessariamente ao estabelecimento de um Estado fascista. E a segunda, que o atual pode ser que não tenha a mesma aparência que tinha durante a década de 1960, mas que todos os sintomas daquilo que um dia chamou-se de fascismo voltam a estar presentes na cena internacional dos nossos dias. É sobre isto mesmo que versa este trabalho, brilhante e necessário, que revisita múltiplos exemplos entre a Itália dos anos vinte do século passado, passando pela Alemanha dos trinta e quarenta, até Myanmar, Hungria, Polônia e os Estados Unidos do presente. Cabe entender que a ausência do Brasil bolsonarista só se deve a época de redação do ensaio, mas o leitor não deixará de perceber estratégias que lhe serão infelizmente familiares.

      O problema com o fascismo é que dele criamos um mito, e os mitos são inatingíveis por definição, nada pode ser comparado a eles. Porém, lamentavelmente o fascismo não tem nada de mitológico. Foi uma realidade para milhões de pessoas durante o século XX i aqueles que fizeram a experiência contam que o clima que respiramos hoje tem muito a ver com aquele que existia nos momentos prévios aos grandes desastres humanitários. Com o nazismo se passa algo parecido. Uma coisa é que ele seja invocado automaticamente e seja usado como desqualificador aos cinco minutos de começar uma discussão entre duas pessoas com pontos de vista políticos opostos e, no outro extremo, que nunca se possa falar nele porque é um monstro que quedou relegado à noite dos tempos e ali é que deve ficar, quieto e guardado. Tanto a frivolidade como o respeito reverencial fazem-nos sombra para tratar de entender isto que hoje está a nos acontecer e é por este motivo que são tão bem-vindas as palavras de Stanley sobre a progressiva normalização de políticas extremistas em diferentes partes do mundo como, por exemplo, o trato desumano aos refugiados, as detenções indiscriminadas e encarceramentos injustos, as retóricas de candidaturas eleitorais contra a imigração que falseiam os dados com o intuito de chegar ao poder ou a mentira tratada como notícia, entre outros. Costumar-se a práticas moralmente reprováveis significa tornar habitual e ordinário aquilo que pouco tempo antes teríamos vivido como excepcional. Desta maneira vamos tolerando o intolerável cada vez com maior tranquilidade e, por conseguinte, como escreve o autor do livro, as acusações de fascismo sempre nos parecem exageradas posto que a invasão de condições ideologicamente extremas vão nos parecendo cada dia mais normais. A normalização, afirma Stanley, significa que as regras do jogo para o uso legítimo do adjetivo “extremo” estão mudando sem parar e isto faz com que as acusações de “fascismo” sempre nos pareçam exageradas, mas isto, segundo ele, não é um bom argumento contra o uso da palavra. Assim as coisas, torna-se necessária uma compreensão cabal do significado e as táticas que o fascismo emprega quotidianamente, e esta é a razão de ser e a pertinência do ensaio de Jason Stanley.    

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    O livro é dividido em dez pontos e um epílogo. Explica a necessidade que o fascismo sempre teve de apresentar a nação com um passado mítico, fabuloso e adulterado; a propaganda que usa para seus fins, a fobia a toda amostra de sofisticação intelectual – o fascismo não existe para dialogar e debater racionalmente, mas para ser imposto de forma visceral e emocional -; as teorias da conspiração nas quais acredita, ou finge que acredita, para inundar a sociedade de um irrealismo necessário para a melhor aplicação de medidas radicais, que logo serão socialmente percebidas como normais; o senso da hierarquia entre vidas que valem mais e vidas que valem menos; a vitimização com a emoção que esconde a contradição entre movimentos nacionalistas movidos pela igualdade e movimentos nacionalistas movidos pela dominação (os oprimidos de hoje podem converter-se nos opressores do amanhã ao querer promover a própria hegemonia); a obsessão com a lei a ordem por cima da igualdade e da justiça social; a demagogia dirigida contra as minorias sexuais, uma ameaça ao patriarcado, e, finalmente, as grandes metrópoles vistas como centros de perversão, mestiçagem e promiscuidade para definir aquilo que de um ponto de vista distinto é entendido como exemplo de pluralismo social salutar. O livro de Stanley não é um ensaio de filosofia política propriamente dito, mas uma explanação trufada de exemplos das estratégias que o fascismo usa para condicionar a política e a vida quotidiana da gente e, eventualmente, chegar ao poder.

    Sobre o problema histórico que o Brasil continua a carregar, vale a pena ler este fragmento: “Desde que Platão e Aristóteles escreveram sobre o assunto, os teóricos políticos sabem que a democracia não pode florescer em solo envenenado pela desigualdade. Não é só que os ressentimentos criados por tais divisões sejam alvos tentadores para um demagogo. O ponto mais importante é que a dramática desigualdade representa um perigo mortal para a realidade compartilhada necessária numa democracia liberal saudável. Aqueles que se beneficiam das desigualdades são frequentemente sobrecarregados por certas ilusões que os impedem de reconhecer a contingência de seus privilégios. Quando as desigualdades se intensificam, essas ilusões tendem a entrar em metástase.”

    Como funciona o fascismo pode ser entendido como uma longa meditação sobre aquilo que tanto preocupou Hannah Arendt, isto é, a persistência de elementos totalitários nas assim chamadas sociedades livres, motivo pelo qual não gostaria de acabar estas notas sem uma menção especial às últimas páginas do capítulo final, antes do epílogo, nas quais Stanley estabelece um fio condutor entre a iniciativa privada e a meritocracia defendidas por Hitler e o mercado livre desregulado promovido pelo liberalismo económico. Não é só que Hitler deplorasse que os sindicados representassem, segundo ele, a ineficiência nos negócios e na vida da nação – quando na verdade o fascismo os rejeita pela ligação que estabelecem entre indivíduos passando por cima de diferenças de raça ou de religião –, mas entendia a iniciativa privada como a plataforma ideal para entronizar o líder, o homem forte que a través do princípio da meritocracia se outorga o direito de governar aqueles que são tidos como fracos. O liberalismo económico vincula a virtude e a liberdade à riqueza que cada um foi capaz de acumular, de modo que, seguindo esta ideologia, não só a liberdade é algo que se “ganha” como o mesmo respeito é algo que as pessoas devemos fazer por merecer. Stanley, não obstante, já havia lembrado muito antes que não forma do vocabulário democrático que o respeito básico e igualitário deva ser uma conquista do esforço laboral, mas que todos somos merecedores dos bens básicos da sociedade e que toda a vida é igualmente digna. “Os movimentos fascistas – escreve – compartilham com o darwinismo social [do liberalismo económico] a ideia de que a vida é uma competição pelo poder, segundo a qual a divisão dos recursos da sociedade deve ser deixada para a pura concorrência do livre mercado. Os movimentos fascistas compartilham seus ideais de trabalho duro, iniciativa privada e autossuficiência. Ter uma vida digna de valor, para o darwinista social, é ter superado os outros pela luta e pelo mérito, ter sobrevivido a uma feroz competição por recursos. Aqueles que não competem com sucesso não merecem os bens e recursos da sociedade. Numa ideologia que mede valor pela produtividade, a propaganda que apresenta os membros de um grupo externo como preguiçosos é uma maneira de justificar sua colocação inferior numa hierarquia de valor”. Stanley admite sem problemas que todas as instituições e sistemas são imperfeitos, incluindo aqueles que dão as boas-vindas aos sindicados e promovem a ideia do bem-estar social, mas isto não representa para ele obstáculo algum, antes todo o contrário, para a defesa de uma mobilização conjunta visando melhores condições de vida universais, deixando a um lado diferenças de qualquer tipo – culturais, religiosas, de gênero ou de aptidão física e mental – que nos permita reconhecer aquilo que a todos nos une como humanos.

Cuidar do mundo: Um diálogo entre Hannah Arendt e Leonardo Boff

Alfons C. Salellas Bosch

Captatio benevolentiae: O texto que o leitor está prestes a ler era um projeto de artigo para revista. No entanto, devido à crise internacional provocada pela impostura do atual governo de extrema direita brasileiro frente aos incêndios na Amazônia dos últimos dias, julguei conveniente publicar estas notas através do blog do Centro de Estudos Hannah Arendt.

A categoria do cuidado ganhou nos últimos anos uma importância capital na obra de Leonardo Boff, um dos intelectuais brasileiros contemporâneos mais reconhecidos internacionalmente cujo enfoque se enquadra dentro da perspectiva do pensamento complexo. Fundador e expoente iniludível da Teologia da Libertação, a trajetória de Boff se alimenta, entre outras, da filosofia, psicologia, sociologia, política, ecologia – isto é, ciência – e espiritualidade, no intuito de reflexionar a partir de diversos lugares sobre o significado da vida humana, junto com a das outras espécies, no mundo e na Terra. 

Nascida em 1906, A biografia intelectual e pessoal de Hannah Arendt está marcada por duas datas. A primeira é 1924, quando entrou na Universidade de Marburg para estudar filosofia com Martin Heidegger. A segunda é exata, 27 de fevereiro de 1933, quando ao incêndio do Reichstag em Berlim se seguiram as prisões preventivas e ilegais nessa mesma noite. A própria Arendt foi arrestada e privada de sua liberdade durante um curto período de tempo. Convencida de que a partir desse momento não se podia olhar para outro lado, focou seus esforços na política e tornou-se uma de suas maiores teóricas.  Fugindo das ruinas que deixou o nazismo, Arendt empreendeu uma labor intelectual voltada para a constante re-criação do mundo – segundo ela um artefato humano – dentro do seu habitat natural, o planeta Terra. Ela morreu em 1975.

I. Diagnóstico da Modernidade

Hannah Arendt e Leonardo Boff compartilham um diagnóstico muito semelhante a propósito da Modernidade. A era moderna, que cientificamente teve seus começos entre os séculos XVI e XVII, está, segundo o pensador brasileiro, dominada pelo paradigma ainda vigente da dominação e da conquista, se rege pelo tipo de racionalidade instrumental-analítica e um ídolo norteia seu percurso: o progresso indefinido, cuja equação assegura que riqueza mais poder equivale à felicidade para o maior número. Com Descartes, o homem acreditou ser o dono e o senhor da natureza, em vez de ser mais um na corrente da vida. Segundo Bacon, fundador do método científico moderno experimental, o homem deve “tratar a natureza como o inquisidor trata o seu inquirido: torturá-lo até que entregue todos os seus segredos”, e nem Hobbes, nem Locke, nem Rousseau, nem Kant, formuladores do pacto social que ainda subjaz no ordenamento das nossas sociedades, incluíram a natureza ou a Terra nas suas reflexões, pois não suspeitavam que tanto elas como a vida em geral pudessem algum dia estar ameaçadas pela mão do homem. Este é, para Leonardo Boff, o grande equívoco de todo o projeto da Modernidade: erguido sob valores falsos, de conquista e dominação, desconsiderou a Terra, dando por descontado que ela iria para sempre oferecer recursos, bens e serviços e seria ilimitada em sua resiliência. Assim, o progresso subjugou até destruir culturas ancestrais, como a dos Guaranis, Maias, Quéchuas, Mapuches, Incas e Astecas, assim como outras da África e da Ásia, com a falsa promessa, nunca cumprida, de fazer participar tais povos da pretendida riqueza dos novos tempos. Desta forma, sem desprezar aspectos inegavelmente positivos na medicina, na locomoção ou nas comodidades domésticas, entre outros, Boff denuncia que a espécie humana, mediante a tecnociência 

ocupou 83% da superfície do planeta, depredando seus bens escassos e modificando a base físico-química de sua infraestrutura ecológica. O consumo humano ultrapassou em 30% a capacidade de reposição dos bens e serviços naturais produzidos pela Terra [e] gases de efeito estufa, acumulados nos quatro séculos de industrialização, estão provocando o aquecimento global do planeta (BOFF, 2012, p. 73).

Arendt, como Boff, parte da hybris, ou seja, a desmedida à que chegou o conhecimento técnico moderno ao ponto de fabricar bombas atómicas capazes de terminar com toda a vida orgânica na Terra. Arendt abre sua reflexão com o significado do lançamento do satélite artificial Sputnik em 1957. Surpreendentemente, e de acordo com ela, a reação que seguiu a esse fato histórico inegável não foi a do orgulho diante do alcance do domínio tecnológico humano, mas a de um alívio por ter encontrado uma saída daquilo que estava sendo considerado uma prisão. Hannah Arendt distingue na sua obra entre mundo, o artifício humano que separa a existência dos homens do ambiente meramente animal, e a Terra, que é “a própria quintessência da condição humana, e a natureza terrestre”, o habitat que proporciona a vida que liga o homem aos outros organismos vivos. À vista disso, esta autora se pergunta: a emancipação e a secularização promovidas pela era moderna, desembocarão no repúdio da Terra, “Mãe de todas as criaturas sob o firmamento”? No ponto em que as “verdades” da ciência moderna podem comprovar-se matematicamente e tecnologicamente, mas não se prestam mais à expressão do pensamento e do discurso comum, a hora pode ter chegado na qual já não possamos pensar e falar sobre aquilo que somos capazes de fazer. Neste cenário, e acredito que seria difícil sustentar que não seja já o nosso, Arendt, em 1958 escreveu:

Se for comprovado o divórcio entre o conhecimento (no sentido moderno de conhecimento técnico [know-how] e o pensamento, então passaríamos a ser, sem dúvida, escravos indefesos, não tanto de nossas máquinas quanto de nosso conhecimento técnico, criaturas desprovidas de pensamento à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível, por mais mortífera que seja (ARENDT, 2014, p. 4).

Leonardo Boff se preocupa por deixar claro nos seus artigos, livros e conferências que a humanidade e a Terra não são entes separados, mas formam uma única entidade complexa. Sem maiores preocupações com a tradição bíblica, a obra deste teólogo contempla o seguinte pressuposto, verdadeiro alfa e ômega da sua reflexão: “não estamos apenas sobre a Terra, mas fazemos parte dela; somos Terra que sente, pensa, ama e cuida” (BOFF, 2018, p. 32). De acordo com Boff, este é o sentido positivo e irrenunciável da planetização, que contrapõe ao termo globalização, cujo significado é apenas econômico. Nesta sequência, devem ser mencionados três documentos que chegaram para emoldurar um pensamento já formado: a oficialização da nomenclatura Mãe Terra pelas Nações Unidas, no dia 22 de abril de 2009, e a Carta da Terra do ano 2000 – uma iniciativa da ONU, desenvolvida pela sociedade civil –, que junto a Encíclica do Papa Francisco de 2015, Laudato Si, oficializaram a expressão Casa Comum, com o objetivo de tornar transparente a profunda unidade da espécie humana com o seu habitat natural.

Ao velho paradigma da dominação e da conquista (razão instrumental), Leonardo Boff contrapõe uma cosmologia de transformação e de libertação sob o novo paradigma do cuidado (razão sensível). Boff encontra seu fundamento filosófico em Ser e tempo de Martin Heidegger, para quem a realidade recebe seu verdadeiro sentido através da preocupação inquieta do cuidado. O filósofo alemão inspirou-se na Ética a Nicômaco e na Retórica de Aristóteles para desenvolver a ideia de que “o cuidado é o modo de ser primeiro de todo ser humano em sua relação para com o mundo, e não somente uma orientação particular e interior da alma, como aparecia nos autores cristãos”. O cuidado coloca o homem como ser-no-mundo, é a estrutura originária do Dasein – da existência humana – e portanto, ser homem, ser mulher, implica estar constituído de cuidado. Nas palavras do próprio Heidegger: “o cuidado significa um fenômeno ontológico-existencial básico” (HEIDEGGER, 2012, p. 261 apud BOFF, 2012, p. 53). Com efeito, o ser humano é capaz de cuidar porque ele já é cuidado na sua estrutura originária básica. Porque precisou e recebeu um cuidado natural e objetivo, por parte de um “deus” ou de algum outro, o ser humano é capaz, como projeto ético assumido conscientemente, de cuidar de si mesmo e dos outros na qualidade de valor e propósito pessoal, social e planetário. Desta forma, o cuidado passa de dado natural a dado cultural. Isto, observa Boff fazendo a análise de Heidegger, pressupõe levar a sério a fragilidade e a vulnerabilidade como dados primeiros do homem, ser que está “lançado no mundo” e continuamente exposto a riscos. Assim sendo, a condição humana exige o cuidado, que Heidegger define como um existencial, uma preocupação para o presente e para o futuro, não apenas de si, mas do outro e da vida. Para Boff,

“cuidado é não permitir que o desespero e o desamparo tolham o sentido da alegria de viver, pois, de qualquer forma, jamais poderemos deter o curso irrefreável da morte, hospedada dentro da vida desde o seu primeiro momento de existência” (BOFF, 2012, p. 63).

A humanidade do ser humano se deixa resumir na combinação entre cuidar e ser cuidado. 

“Desta compreensão do cuidado, enquanto natureza do ser humano no mundo e na história, emerge a dimensão ética, que não se deriva do cuidado. O próprio cuidado é sinônimo de ética e do ético no sentido clássico do ethos grego, como cuidado da casa e de todos os que nela habitam, seja a casa individual, seja a Casa Comum, que é o planeta Terra” (idem, p. 65).

Do ponto de vista científico, Boff salienta que o cuidado já estava presente há 3,8 bilhões de anos, quando a matéria alcançou o grau de complexidade e organização que permitiu a emergência da vida na Terra. Na linguagem do autor, “a primeira bactéria com cuidado singularíssimo dialogou quimicamente com o entorno, logrou um equilíbrio dinâmico que lhe possibilitou sobreviver e continuar a evoluir.” (idem, p. 43). Desde uma perspectiva quântica, sublinha o teólogo, esta foi uma possibilidade entre tantas outras, mas foi essa contingência realizada a que deu lugar ao nosso mundo e não a outro. Nesta narrativa, com a aparição do ser humano, o cuidado ganhou há sete ou nove milhões de anos uma qualidade nova: passou de um processo ecológico a um propósito consciente e tornou-se “amor, reconhecimento e comunhão. […] Desta forma o cuidado entra na definição do próprio ser humano como existência-no-mundo-com-os-outros, aberto à totalidade do Ser, ao futuro e à morte” (idem, p. 43-44). 

No intuito de refundar o pacto natural, Leonardo Boff denuncia a quebra do contrato entre a Terra e a humanidade. Os homens, explica, criaram um mundo próprio, exilaram-se da Terra, sua casa, e estabeleceram com ela uma relação de troca, meramente comercial e extrativa. O pacto social resultante desta automutilação considera os humanos como únicos seres de direito, esquecendo o direito à vida dos outros seres que habitam o planeta e os direitos da Mãe Terra. Boff entende que a consequência deste movimento 

foi a solidão, a perda de raízes e de conexão com os outros seres humanos, centrados somente sobre si mesmos. […] Para resgatar a conexão com a Terra faz-se mister articular o pacto social com o pacto natural, de forma que os elementos naturais sejam reconhecidos em seus direitos e sejam igualmente considerados cidadãos. A democracia, então, será sociocósmica; uma democracia da Terra, como o sonham milhões de povos andinos (idem, p. 86).

Hannah Arendt, na sua fenomenologia da vita activa, faz uma reflexão que presta apoio às palavras de Boff. Segundo a autora, o trabalho [labor] e a obra [work] sempre se confundiram historicamente, porém não são a mesma coisa. A condição humana do trabalho é a vida e inclui todas aquelas atividades cujo propósito básico é atender às necessidades próprias das funções biológicas mais elementares do homem. O ser humano precisa comer, beber, vestir, dormir e, ademais, ganhar o pão, isto é, participar do processo coletivo de produção material e, assim, conseguir o cumprimento dos bens mais básicos. Tem também que preservar a espécie, reproduzindo-a, e, para tanto, tem que gerar filhos. Cansado, ao final do dia precisa de repouso, mas no dia seguinte o processo recomeça. A atividade humana do trabalho compartilha com as funções biológicas da pessoa e da natureza uma categoria que define as três por igual: a categoria do eterno retorno cíclico. As atividades incluídas no nome genérico de trabalho não têm outro objetivo do que o de sustentar, preservar, perpetuar, ajudar e periodicamente recuperar as energias perdidas; sua origem reside no fato de que o homem é um ser corporal que possui um instinto de conservação e precisa exercê-lo. 

Aquilo que é produzido pelo trabalho não perdura, sequer nem está destinado a perdurar. Paradoxalmente, as coisas que menos duram são as mais necessárias durante o processo da vida. Logo, precisamos voltar a produzi-las. Trabalho, descanso, recuperação das energias, trabalho. Comer, assimilar uma parte do que foi ingerido, expulsar o resto, e comer de novo. Este é o ciclo vital dos homens, um círculo que jamais é concluído, até que a morte chega, uma linha que passa sempre pelos mesmos pontos e que sempre volta ao ponto de partida. O trabalho não produz algo permanente, pois seus produtos são consumidos pelo processo da vida, e devem ser re-produzidos continuamente. Eles não têm identidade nem independência, e seu significado deriva do seu lugar no processo vital. Os produtos do trabalho são bens de consumo. 

O trabalho e o consumo são duas etapas do sempre repetido ciclo da vida biológica. Esse ciclo é sustentado pelo consumo, e a atividade que proporciona os meios para o consumo é o trabalho. De modo que a sociedade de consumo é a sociedade do animal laborans. Mesmo necessário, o trabalho é fútil, pois seus produtos não podem originar um mundo “objetivo” em que qualquer um possa se instalar permanentemente. Ademais, do momento em que seus movimentos estão ditados pelo processo da vida, o trabalho não requer muita iniciativa ou pensamento. Ao contrário da atividade da obra [working], que termina quando o objeto está acabado e pronto para ser acrescentado ao mundo comum de coisas, “a atividade do trabalho [laboring] move-se sempre no mesmo círculo prescrito pelo processo biológico do organismo vivo, e o fim de suas ‘fadigas e penas’ só advém com a morte desse organismo” (idem, p. 121, grifos no original). É por isso, afirma Arendt, que muitas ferramentas antigas puderam ser substituídas, no mundo moderno, por máquinas que, ainda com seu processo singular, combinaram-se bem com o próprio processo do trabalho. 

Sob o nome genérico de obra, a autora inclui todas aquelas atividades com as quais o homem produz objetos duráveis a partir do material natural, desde simples objetos de uso até as obras de arte. À diferença do trabalho, que produz bens consumíveis, e da ação, que não produz algo tangível, a obra produz “obras” e “objetos”. Um objeto possui uma relativa independência em relação a seu criador e precisa ser tratado de uma maneira específica. Diferentemente dos bens de consumo, ou produtos do trabalho, os objetos produzidos pela obra têm a pretensão de durar e de não serem absorvidos do momento da sua aparição. Além disso, “embora o uso esteja vinculado à deterioração desses objetos, a deterioração não é o destino destes últimos, no mesmo sentido em que a destruição é o fim intrínseco de todas as coisas destinadas ao consumo. O que o uso desgasta é a durabilidade” (idem, p. 170). Os objetos, feitos para serem utilizados, possuem a nova dimensão de oferecerem resistência ao homem (ob-jecta) e de estabelecerem-se no mundo. Para dizê-lo de um modo diferente, se não são usados, não se “evaporam” facilmente, pois eles possuem sua própria “vida” e podem sobreviver à indiferença ou à negligência humanas. Resistentes à passagem do tempo, às vezes os produtos da obra não são apreciados tanto pelo serviço que oferecem quanto por sua capacidade de duração. Inversamente, utilizando-os, também nós somos utilizados por eles e pelo mundo que eles criam. Desde que os produtos da obra têm a capacidade de constituir um mundo de aparências, são-lhes feitas algumas exigências, isto é, espera-se que eles sejam bonitos e agradáveis à vista, debate-se sobre seu estilo, são datados e incorporados à história pessoal e coletiva, e são procuradas formas de preservá-los e mantê-los. Assim, não é pouco frequente depositar sentimentos nos objetos, coisa não tão habitual quando a relação é com os bens de consumo. Em consequência, a atividade da obra corresponde à condição humana da mundanidade. Com cada objeto durável o homem constrói um ambiente, um meio, e incrementa a distância entre ele e a natureza. Correlacionado, o mundo provê o homem do sentimento de continuidade no tempo: pelo hábito de ver, mais ou menos, as mesmas coisas cada dia, se faz consciente de ser ele mesmo um dia apôs o outro. O mundo substitui o conceito cíclico do tempo da natureza pelo retilíneo, que é o distintivo do ser humano (nasce, vive e morre). Em outras palavras, “contra a subjetividade dos homens afirma-se a objetividade do mundo feito pelo homem” (idem, p. 171). De acordo com Arendt (idem, p. 195-196, grifo nosso), 

o que está em jogo não é, naturalmente, a instrumentalidade como tal, o emprego de meios para atingir um fim, mas antes a generalização da experiência da fabricação, na qual a serventia e a utilidade são estabelecidas como critérios últimos para a vida e para o mundo dos homens. Essa generalização é inerente à atividade do homo faber porque a experiência dos meios e do fim, como está presente na fabricação, não desaparece com o produto acabado, mas prolonga-se até o destino final deste último, que é o de servir como objeto de uso. A instrumentalização de todo o mundo e de toda a Terra, essa ilimitada desvalorização de tudo o que é dado, esse processo de crescente ausência de significado no qual todo fim é transformado em um meio e que só pode ser interrompido quando se faz do próprio homem o amo e senhor de todas as coisas, não provém diretamente do processo de fabricação; pois, do ponto de vista da fabricação, o produto acabado é um fim em si mesmo, uma entidade independente e durável, dotada de existência própria, tal como o homem é um fim em si mesmo na filosofia de Kant. Somente na medida em que a fabricação fabrica principalmente objetos de uso o produto acabado novamente se torna um meio, e somente na medida em que o processo vital se apodera das coisas e as utiliza para seus fins é que a instrumentalidade limitada e produtiva da fabricação se transforma na instrumentalização ilimitada de tudo o que existe.

Para Arendt, o drama do mundo moderno é o de ter-se transformado numa sociedade de animal laborans, que destrói tudo o que cria em vez de construir para a duração. Embora sujeito de maneira limitada à lógica dos meios e dos fins, o homo faber da era moderna, entre os séculos XVII e XIX, era capaz de criar e de estabelecer um mundo. A novidade do animal laborans no século XX é a de levar ao extremo essa mesma lógica, que já não é a da criação duradoura mas a da destruição constante, num império do efêmero no qual a segurança de qualquer tipo deixou de existir.  Isto termina por colocar em perigo o mundo e a vida humana neste planeta, que também podem acabar por serem consumidos. Arendt coloca o acento na extensão que a esfera da necessidade – o natural, o biológico, isto é, o meramente cíclico – experimentou no mundo moderno. Portanto, se, como escreve no seu Diário filosófico (cf. 2006, p. 541), a natureza do homem estivesse descoberta no animal laborans, isso significaria o final do humanismo, pois este teria alcançado o seu fim.

II. Rumo a um novo pacto

Urge, pois, uma mudança importante em forma de refundação do vínculo do ser humano com o mundo e com a Terra. Para Boff, o cuidado deve substituir a dominação em uma nova cosmologia que em vez de anular as diferenças, as acolha num biorregionalismo que valorize cada território. Não é verdade, denuncia o autor, que o homem seja apenas um ser de necessidades e de desejo de acumulação ilimitada, mas “um ser criativo, com fome de beleza, de comunhão e de espiritualidade”. O sentido de um ecodesenvolvimento deve encontrar o seu sujeito não na mercadoria, não no mercado, o setor privado ou o Estado, mas nos “seres humanos, tomados pessoal e coletivamente, e os demais seres vivos nas suas múltiplas dimensões. Em decorrência disso, Boff é partidário de um decrescimento econômico – ou “acrescimento” –, que garanta a sustentabilidade ambiental e a equidade social, que reduza a importância do quantitativo em favor da qualidade de vida para o maior número, preservando os bens e os serviços que serão necessários as futuras gerações. Urge pensar global e a longo prazo. Para tanto, se faz necessária a construção de uma democracia integral na qual o indivíduo se transforme num “cidadão-sujeito” empoderado, isto é, dono do seu desenvolvimento pessoal, mas também do coletivo; que coopere com os outros em vez de competir e concorrer contra eles; e que se autoeduque continuamente para exercer a cidadania junto com o seus concidadãos. Desta maneira se desenvolverá a práxis, ou seja, “esse movimento dialético entre a conversão do conhecimento em ação transformadora e a conversão transformadora em conhecimento”. Essa conversão permite que não mude apenas a realidade, mas também o sujeito. Para Boff, é imperativo superar o reducionismo da visão mecanicista para “assumir a cultura da complexidade, da corresponsabilidade e do cuidado”, através de três eixos: a sociedade sustentável, a democracia socioecológica e a educação libertadora. Em diálogo com os antropólogos chilenos, Jorge Maturana e Francisco Varela, com o pensador francês da complexidade, Edgar Morin, ou com o cosmólogo norte-americano Brian Swimme – os quais afirmam que o humano é um ser de socialidade, cooperação e convivialidade –; em diálogo também com a física quântica de Niels Bohr e Werner Heisenberg, Leonardo Boff reafirma a lei fundamental do processo cosmogênico:

Tudo tem a ver com tudo em todos os pontos e em todos os momentos; tudo está inter-relacionado, e nada existe fora dessa panrelacionalidade. Portanto, nada existe justaposto ou desarticulado. Senão que as coisas estão de tal modo interconectadas, que formam um incomensurável sistema (BOFF, 2018, p. 202).

Junto ao filósofo brasileiro, radicado na França, Michel Löwy, a utopia para a qual aponta Boff é a de um ecosocialismo que se inscreve na lógica global das coisas e é sua expressão histórico-social. Assim visto, o ecosocialismo transformaria num projeto político aquilo que a natureza prescreve em seu dinamismo interno, numa visão consciente do mundo e numa ética de solidariedade, cooperação e inclusão (cf. LÖWY, 2014, p. 63ss apud BOFF, 2018, p. 202). Boff não tem interesse algum em resgatar nenhuma utopia maximalista vinda do passado, nenhuma daquelas que custaram tantas vidas para nada, mas acredita com Shakespeare que o ser humano está feito de sonhos e, através do “princípio-esperança” de Ernst Bloch como guia norteador, pensa e age de acordo com o “viável possível” teorizado por Paulo Freire, ou seja, de acordo com aquelas utopias minimalistas que no dizer do pedagogo, fazem a sociedade “menos malvada e tornam menos difícil o amor”. Assim, para Boff, na sua perspectiva ecoteológica, 

crer significa romper com o mundo da pura razão, da funcionalidade das instituições e da lógica linear, para as quais não há e não deve haver surpresas. Crer é abrir espaço para o imprevisto, para a magia e para o “milagre” de que as coisas podem, de repente, mudar e ganhar outra configuração que abre um horizonte de esperança para a vida humana (BOFF, 2018, p. 254). 

Leonardo Boff compartilha com Hannah Arendt uma ética da responsabilidade em relação ao mundo e à Terra.  Para a pensadora, a faculdade da ação tem sua raiz ontológica no fato da natalidade, que é para ela o milagre salvador do mundo. O nascimento de um ser humano marca a aparição de um ser irrepetível, único, dotado da liberdade e da capacidade de atuar de forma imprevisível. “O fato de o homem ser capaz de agir – escreve Arendt – significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável” (ARENDT, 2014, p. 222). Arendt mostra-se convencida de que só a plena experiência da capacidade para introduzir novos começos pode conferir ao mundo fé e esperança; essa esperança que é para Boff “mais do que uma virtude entre outras; é um motor que temos dentro de nós e que alimenta todas as demais virtudes, lançando para frente, suscitando novos sonhos de uma sociedade melhor e a coragem de realiza-los” (BOFF, 2018, p. 101).

Referências bibliográficas

ARENDT, Hannah. Diario filosófico. Barcelona: Herder, 2006.

______. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.

BOFF, Leonardo. O cuidado necessário. Petrópolis: Vozes, 2012.

______. Brasil: Concluir a refundação ou prolongar a dependência. Petrópolis: Vozes, 2018.