O que fica? Fica a língua materna.

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Notas sobre a tradução brasileira da entrevista de Hannah Arendt a Günter Gaus | por Ludmila Franca-Lipke

Hoje publicamos o vídeo da entrevista completa de Hannah Arendt a Günter Gaus, pela primeira vez com legendas em Língua Portuguesa. Transmitida em 1964 pelo canal alemão ZDF, parte da entrevista foi traduzida para o inglês e publicada na coletânea “Essays in Understanding”, sob o título “What remains: the language remains”. No Brasil, a editora Companhia das Letras publicou a coletânea sob o título “Compreender” e traduziu a entrevista da versão em inglês para o português.

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“Eu diria que o mais importante para mim é compreender” – Arendt a Gaus, na entrevista de 1964

Trata-se de um registro valioso de Arendt, onde ela fala de sua vida e sobre sua atitude perante os críticos, esclarecendo algumas interpretações erradas em torno do então recém-lançado livro “Eichmann em Jerusalém” (1963). Gravada em setembro de 1964, durante a visita de Arendt à Alemanha Ocidental, o programa foi ao ar em outubro do mesmo ano. A tradução para o português se deu a partir do áudio original da entrevista, e não do registro escrito, o que possibilitou acrescentar informações e trechos que não constam das transcrições em alemão e nem da tradução em inglês. Disso resultaram, além de conteúdo extra, diferentes escolhas em relação ao vocabulário, que se afasta um pouco daquele que foi adotado na tradução contida no livro “Compreender”, publicado no Brasil.

Toda tradução é uma interpretação e tal não seria diferente com nossa versão. Este texto, portanto, tem por finalidade explicar as nossas escolhas e esclarecer alguns aspectos, trazidos por Arendt na entrevista, contextualizando-os para melhor entendimento do conteúdo.

Quem foi Günter Gaus

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O jornalista e político Günter Gaus – Archivbild (AP)

Nascido em 1929, Günter Gaus foi jornalista, diplomata e político. Trabalhou na revista “Der Spielgel” e no jornal “Süddeutsche Zeitung”, onde escrevia sobre política. Gaus começou sua carreira jornalística bem cedo, antes mesmo de concluir os estudos em Germanística, na Universidade de Munique. Como redator-chefe da “Der Spiegel”, ele atuou como apoiador da Ostpolitik, uma política de aproximação entre as Alemanhas, à época divididas. Em 10.04.1963, ele ganhou projeção nacional ao estrear pela emissora alemã ZDF o programa de entrevistas “Zur Person”, onde fazia entrevistas com o intuito de retratar grandes personalidades da política, bem como artistas e intelectuais. Seu programa tornou-se um clássico e, apesar de ter terminado em 1965, até hoje conta com reprises na tv alemã. Em 1973, ele foi nomeado Secretário de Estado na Alemanha Ocidental, assumindo a função de Representante da República Federal da Alemanha na República Democrática Alemã, função que desempenhou até 1981, promovendo ações de cunho humanitário nas relações entre as duas Alemanhas. Com sua filiação à SPD, em 1976, ele também atuou como Senador para Ciências e Artes. Com a Reunificação da Alemanha, da qual ele foi severo crítico, por entender que faltava uma “unificação interna”, ele se dedicou ao jornalismo mais voltado à esquerda social-democrata, escrevendo para o jornal “Der Freitag”, que ele ajudou a fundar, e através da revista mensal sobre política “Blätter für deutsche und internationale Politik”.

Gaus faleceu em 2004, estando enterrado no cemitério da Dorotheenstraße, em Berlim. Sua atuação política e jornalística deixaram uma marca indelével na Alemanha, sendo lembrado ainda hoje como grande jornalista pelos seus pares.

Recha Freier, Henrietta Szold e a Alliyah da Juventude

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Recha Freier

Arendt menciona algumas personalidades da resistência judaica na Alemanha dos anos 1930, que no texto publicado em português não estão citadas. Uma delas é a militante e escritora judia-alemã Recha Freier, responsável por salvar mais de 7.000 crianças e adolescentes antes e durante a Shoá. Filha de judeus ortodoxos, Recha Freier nasceu na Alemanha, em 1892. Confrontada com o antisemitismo já na infância, sendo a única criança judia de sua escola, ela  foi objeto de inúmeras perseguições e humilhações por parte de colegas e professores. Formou-se pedagoga em Munique, tendo atuado como professora de alemão, inglês, francês e piano em escolas renomadas. Mesmo após o início das hostilidades aos judeus e a ascensão de Hitler, corajosamente Freier ficou em Berlim com sua filha, para seguir na resistência, desempenhando seu trabalho de encaminhamento de crianças e adolescentes judeus para a Palestina, enquanto seus filhos e marido foram refugiar-se em Londres. Recha Freier é, juntamente com Eva Michaelis-Stern, fundadora da “Alliyah da Juventude”, organização judaica cujo escopo era o resgate do número máximo possível de crianças e adolescentes judeus da Alemanha, encaminhando-os em segurança para a Palestina. Como nem sempre atuava de forma legal na obtenção dos papeis para autorização de viagem e imigração dos jovens judeus, Freier foi afastada da chefia da associação e juntou-se a sua família em Londres, em 1938. Ao saber dos acontecimentos da Noite dos Cristais, em 1939, Recha Freier retornou imediatamente para a Alemanha, decidida a levar adiante suas atividades. Denunciada por propaganda anti-nazista, em 1940, ela conseguiu fugir a tempo para a Palestina, levando consigo mais 120 crianças judias, que resgatou na morte certa em campos de concentração nazistas. Seguiu atuante no trabalho de suporte e assistência à crianças judias imigrantes em Israel, fundando a “Agricultural Training Centre for Israeli Children”, uma associação para ajudar crianças pobres, o “Israel Composers Fund” e o “Testimonium Scheme”, este último dedicado à Literatura e Música. Recha Freier morreu em 1984, em Israel.

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Henrietta Szold

Personalidade ativa no resgate de judeus da Alemanha Nazista, Henrietta Szold nasceu em Baltimore, em 1860. Assistente social, escritora e pedagoga, Szold é a fundadora da “Hadassah”, a maior organização sionista do mundo. Foi membro da “Vaad Leumi” (a representação oficial dos cidadãos judeus no “Yishuv”, entidade existente antes da fundação do Estado de Israel) e dirigiu a “Alliyah da Juventude” em Jerusalém.

Já no final dos anos 1870, Szold e seu pai eram engajados no acolhimento de judeus do Leste Europeu e da Rússia que chegavam como imigrantes em Baltimore. Com uma atuação marcante nas associações judaicas nos Estado Unidos, o grande desafio de Szold aconteceria na II Guerra Mundial. Já no começo dos anos 1930, ela colaborou no resgate de crianças judias da Europa para a Palestina. Quando a situação dos judeus na Alemanha piorou drasticamente entre os anos de 1933-34, Szold estabelece uma parceria com Recha Freier e torna-se chefe da filial palestina da “Alliyah da Juventude”, fundada por Freier em Berlim, atuando diretamente no salvamento de milhares de crianças e adolescentes de origem judaica, que se encontravam na Alemanha e em outros países. Szold faleceu em 1945, na cidade de Jerusalém.

Sobre o vocabulário adotado: expressões mais relevantes

Como dito acima, algumas expressões foram traduzidas para o português de forma diferente da tradução em inglês e da publicação no livro Compreender. O objetivo foi tornar o texto mais fiel ao original alemão e preservar o sentido de certas falas. Ao longo da entrevista, Arendt faz uso de expressões idiomáticas alemãs, usadas corriqueiramente. Algumas são próximas de expressões idiomáticas brasileiras, como “segurar o bico” (“die Schnauze halten”), que significa “calar-se” ou “se abster de falar”. Nesse caso, decidiu-se manter a literalidade da expressão, pois, além de ser compreensível ao falante de português, ela preserva o tom usado por Arendt. Já a expressão “olhar suas próprias cartas” (“sich selbst in die Karten gucken”) foi traduzida por “olhar dentro de si mesmo”, privilegiando a compreensão em detrimento da literalidade. O mesmo ocorre com a expressão “ir para a água” (“ins Wasser gehen”), que Arendt usa para ilustrar sua necessidade vital de estudar filosofia na juventude. A expressão tanto pode significar literalmente “ir para a água”, quando alguém se dirige para um banho de mar, por exemplo, ou pode significar “se afogar”, pois remete também a afundar na água. Um terceiro sentido, mais metafórico, remete ao suicídio. Optou-se por usar o termo “morrer”, pois a própria Arendt esclarece que ela amava a vida, logo após dizer a expressão. Portanto, interpretou-se que ela não falava em praticar ativamente um suicídio, mas que seria como um suicídio, se ela fosse privada de ler filosofia, o que remete a uma atitude passiva, ou seja, “morrer”, em lugar de “se matar”.

Merece atenção especial a tradução do termo “Gleichschaltung”, empregado por Arendt ao discorrer sobre a situação daqueles que, de alguma forma, apoiaram o nazismo. Originalmente, o termo foi traduzido como “uniformização”. Preferiu-se nesta nova tradução o uso do termo “alinhamento”, por uma questão, mais uma vez, de sentido. Não é comum, em Língua Portuguesa, dizer que “Fulano se uniformizou com o regime ditatorial”, mas sim “Fulano se alinhou ao regime ditatorial”. Ainda que o termo tenha praticamente o mesmo sentido — de se integrar ao regime —, interpretou-se que o termo “alinhamento” é mais completo e possui mais força neste contexto. A expressão “Gleichschaltung” vem de “gleich” = “igual” ou “mesmo”, e “schalten” = “colocar”, “pôr”. Portanto, em termos mais literais, “sich gleichschalten” pode ser traduzido como “uniformizar-se”, significando a atitude alinhar-se a algo para fins de adesão, daí que optou-se por empregar a expressão “alinhar-se”, dada a maior compatibilidade com a forma de se expressar em português.

Situação semelhante ocorre com a tradução da palavra “Wagnis”, que, em termos literais, significa “risco”, mas foi traduzido como “aventura”, por uma questão de estilo. “Aventurar-se” soa mais profundo que o mero “arriscar-se”, com uma faceta mais positiva e profunda que o mero “risco”, geralmente associado a situações de caráter mais negativo, sem necessariamente decorrer da escolha do sujeito em arriscar-se. Aventurar-se, ao contrário, é sempre uma ação consciente empreendida por alguém, o que se aproxima melhor da noção de “vida ativa”.

Por fim, um dado meramente técnico. “Grüne Grenze” (literalmente “fronteira verde”) é como se refere à zona de fronteira com menos vigilância, através da qual, por conseguinte, é mais fácil realizar fugas. Achamos importante acrescentar o termo, pois ele ilustra os percalços de uma fuga ilegal, tal qual a realizada por Arendt, seu futuro marido Heinrich Blücher e tantos outros judeus, comunistas, ciganos e dissidentes do nazismo, durante o III Reich.

Com a publicação desta versão com legendas em português, espera-se ampliar o acesso ao legado arendtiano no Brasil, permitindo que mais pessoas possam conhecer as ideias de uma das maiores pensadoras do século XX.

Revolution and Freedom | Hannah Arendt

Editado por Adriano Correia, para os Cadernos de Filosofia Alemã.

My subject today is, I’m afraid, almost embarrassingly topical. Revolutions have become everyday occurrences since, with the liquidation of imperialism, one people after the other has risen “to assume among the powers of the earth the separate and equal station to which the laws of Nature and of nature’s God entitle them”. Just as the most lasting result of imperialist expansion was the export of the European nation-state idea to the four corners of the earth, so the liquidation of imperialism under the pressure of nationalism has led to the export, as it were, of the idea of revolution all over the globe. For all the revolutions, no matter how violently anti-Western their rhetoric may be, stand under the sign and have fallen into the tradition of revolution in the West. This state of affairs was preceded by the series of revolutions after the First World War on the European continent itself. Since then, and even more markedly after the Second World War, nothing seems more certain than that a revolutionary change of the form of government, as distinguished from a mere alteration of administration, will follow defeat in war between the great powers – short, of course, of total annihilation. But it is of some importance to note that even before technological developments made wars between the great powers literally a life and death struggle, and hence self-defeating, at least for the time being, wars had become politically a matter of life and death.

Para ler o artigo completo, clique aqui.

Godard recita Arendt

Monólogo (em francês com legendas em inglês) “A natureza do totalitarismo” // texto de Hannah Arendt, recitado por Jean-Luc Godard

Texto publicado na coletânea de ensaios “Compreender”

Walter Benjamin está morto

Hannah Arendt-Bluecher / 317 West 95th Street / Nova York, N. Y.

17 de outubro de 1941

Caro Scholem:

Miriam Lichtheim deu-me seu endereço e envia saudações. Embora eu acredite que mesmo sem esse empurrão, eu também teria me encorajado a escrever para você, devo admitir que foi um impulso muito eficaz. Wiesengrund disse-me que lhe enviou um relatório detalhado sobre a morte de Benjamin. Eu mesma descobri, quando cheguei aqui, alguns detalhes que não são irrelevantes. Talvez eu não seja muito qualificada para apresentar os fatos, já que dificilmente havia contado com um desfecho como esse, de modo que, por várias semanas após sua morte, ainda acreditei que tudo era boato de emigrantes. E isso apesar do fato de que precisamente nos últimos anos e meses fomos amigos íntimos e nos víamos regularmente. No início da guerra, estávamos todos juntos durante o verão em um pequeno ninho francês perto de Paris. Benji estava em excelente forma, tinha acabado partes do seu Baudelaire e pensava – com razão, na minha opinião – que estava prestes a fazer grandes coisas. A eclosão da guerra o assustou imediatamente. No primeiro dia da mobilização, ele fugiu de Paris para Meaux por medo de ataques aéreos. Meaux era um famoso centro de mobilização, com um aeroporto de grande importância militar e uma estação ferroviária que constituía um ponto estratégico para toda a concentração de tropas. A consequência foi, é claro, que desde o primeiro dia os alarmes aéreos não cessaram e Benji voltou rapidamente, assustado. Ele chegou bem a tempo de ser trancado em um campo de internamento. No acampamento temporário de Colombes, onde meu marido [Heinrich Blücher] teve longas conversas com ele, ele estava em grande desespero. E isso, claro, por boas razões. Ele imediatamente praticou uma forma peculiar de ascetismo, parou de fumar, deu todo o seu chocolate, recusou-se a se lavar, fazer a barba ou mesmo se mover. Após sua chegada ao último campo, ele não se sentiu tão mal: tinha ao seu redor um grupo de meninos que gostava dele, que queria aprender com ele e que o livrou de todos os tipos de fardos.

Quando ele voltou, em meados de novembro, ficou bastante feliz por ter tido essa experiência. Seu pânico inicial também havia desaparecido completamente. Nos meses seguintes, escreveu as Teses histórico-filosóficas, das quais também lhe enviou, como me disse, uma cópia, e das quais se pode deduzir que estava na trilha de coisas novas. No entanto, ele ficou imediatamente com medo da opinião do Instituto. Você certamente saberá que o Instituto o informou, antes do início da guerra, que seu pagamento mensal não era mais garantido e que ele deveria procurar outra coisa. Isso o entristeceu muito, embora a verdade seja que não estava muito convencido da seriedade dessa afirmação. Mas, em vez de melhorar sua situação, isso tornou tudo ainda mais difícil. Esse medo desapareceu com a eclosão da guerra, mas ele continuou a temer a reação a suas teorias mais recentes e certamente pouco ortodoxas. Em janeiro, um de seus jovens amigos do campo, que por acaso também era amigo ou discípulo de meu marido, suicidou-se. Principalmente por motivos pessoais. Isso o afetou de uma forma extraordinária e em todas as conversas ele apoiou esse menino e sua decisão com veemência verdadeiramente apaixonada. Na primavera de 1940, todos partimos com o coração pesado para o consulado americano, e saímos de lá pesarosos, pois nos foi explicado que teríamos de aguardar entre dois a dez anos pela nossa vez na lista de espera. Nós três começamos a ter aulas particulares de inglês. Nenhum de nós levou isso muito a sério, mas Benji aspirava aprender o suficiente para ser capaz de dizer que não gostava nada do idioma. E ele conseguiu. Seu horror pela América era indescritível, e já então dizem que ele havia comunicado a amigos que preferia uma vida mais curta na França a uma mais longa nos Estados Unidos. Tudo isso terminou rapidamente quando, a partir de meados de abril, todos os internos liberados que tivessem até 48 anos foram submetidos a um exame médico para determinar se estavam aptos para o serviço militar. Esse serviço era, na verdade, apenas mais uma palavra para designar internação para trabalhos forçados e, em comparação com a primeira internação, significava, na maioria dos casos, uma piora. Que eles iriam declarar Benji impróprio estava claro para todos, exceto para ele.

Durante esse tempo, ele ficou muito irritado e me explicou repetidamente que não poderia passar pelo mesmo drama novamente. Então, naturalmente, ele foi declarado impróprio. Independentemente dessa medida, em meados de maio ocorreu a segunda e mais completa internação, da qual você já deve ter ouvido falar. Três pessoas foram milagrosamente poupadas, incluindo Benji. No entanto, em meio ao caos do governo, ele nunca poderia saber se e por quanto tempo a polícia iria cumprir uma ordem do Ministério do Exterior, e se não iria prendê-lo sem mais delongas. Eu mesmo não o via mais a essa altura, porque também tinha sido internada, mas alguns amigos disseram-me que já não se atrevia a sair e que estava em constante estado de pânico. Ele conseguiu sair de Paris com o último trem. Carregava apenas uma pequena pasta com duas camisas e uma escova de dentes. Foi, como você sabe, a Lourdes. Quando saí de Gurs, em meados de junho, também fui para Lourdes e fiquei lá por várias semanas por iniciativa dele. Foi o momento da derrota; alguns dias depois, os trens não estavam mais circulando; ninguém sabia onde as famílias, homens, filhos ou amigos foram deixados. Benji e eu jogamos xadrez de manhã à noite e líamos o jornal nos intervalos, se houvesse um.

Tudo estava muito bem até o momento em que foi proclamado o armistício com a famosa cláusula de extradição. Obviamente, nos sentimos muito piores depois, embora eu não possa dizer que Benji realmente entrou em pânico. Em pouco tempo, ficamos sabendo dos primeiros suicídios em um internato durante a fuga dos alemães, e Benjamin, pela primeira vez, começou a falar comigo repetidas vezes sobre suicídio. Que essa saída era a que restava. Para meu protesto extremamente enérgico de que sempre se tem tempo para isso, ele repetiu de uma forma muito estereotipada que isso nunca poderia ser conhecido e que em nenhum caso deveria-se retardar demais. Por outro lado, estávamos falando sobre a América do Norte. Ele parecia estar mais conformado com essa ideia do que antes. Levou a sério uma carta do Instituto, explicando que todos os esforços estavam sendo feitos para levá-lo para lá. Levou menos a sério, contudo, uma outra declaração, dizendo que iria entrar para o conselho editorial da revista com salário garantido. Aceitou um contrato simulado para lhe fornecer um visto. Estava com muito medo, ao que parece sem motivo, de que, uma vez aqui, eles o deixassem em apuros.

No início de julho saí de Lourdes para ir à la recherche de mon mari perdu [em busca do meu marido perdido]. Benji não estava muito entusiasmado e duvidei por muito tempo se não deveria levá-lo comigo. Mas isso teria sido simplesmente impraticável. Lá ele estava bastante seguro das autoridades locais (com uma carta de recomendação do Ministério do Exterior), não podendo estar mais seguro que em outro lugar. Até setembro, só tive notícias dele por carta. Enquanto isso, a Gestapo estava em seu apartamento e confiscou tudo. Ele me escreveu muito deprimido. Embora seus manuscritos tenham, entretanto, sido recuperados, ele tinha motivos para acreditar que havia perdido tudo.

Em setembro, fomos para Marselha, pois nossos vistos já haviam chegado lá. Benji estava lá desde agosto, já que seu visto chegara em meados daquele mês. Ele também possuía o famoso Transit espanhol e, claro, o português. Quando o vi novamente, seu visto espanhol tinha apenas oito ou dez dias de validade. Na época, não havia esperança de obter um visto de saída. Ele me perguntou desesperadamente o que deveria fazer, se não conseguíssemos obter vistos espanhóis em tempo para que pudéssemos cruzar a fronteira juntos. Disse-lhe e mostrei-lhe que era inútil e que por outro lado devia partir agora, pois os vistos espanhóis àquela altura já não eram renovados. Disse-lhe também que me parecia muito incerto por quanto tempo esses vistos existiriam em geral e que não se deveria correr o risco de que expirassem. Que obviamente o melhor seria nós três irmos juntos, que então ele viesse para Montauban, onde estaríamos, mas que ninguém pudesse assumir a responsabilidade por tudo isso. Ao que ele decidiu partir às pressas. Os dominicanos deram-lhe uma carta de recomendação para um abade espanhol. Isso nos impressionou muito na época, embora fosse totalmente absurdo. – Naquela época, em Marselha, mencionou novamente as intenções de suicídio. –

Você certamente sabe o resto: que ele teve que partir com pessoas que lhe eram completamente desconhecidas; que escolheram o caminho mais longo, que envolvia uma caminhada até a montanha de aproximadamente sete horas; que, por razões inconcebíveis, eles destruíram seus documentos de residência na França e assim impediram de retornar à França; que então chegou à fronteira espanhola apenas vinte e quatro horas após seu fechamento para pessoas sem passaporte nacional – todos nós tínhamos apenas os papéis do consulado americano -; que Benji havia desmaiado várias vezes já na ida; que na manhã seguinte deveriam ser entregues na fronteira com a Espanha e que ele, na noite em que lhes foi concedida, cometeu suicídio.

Quando chegamos a Portbou, meses depois, procuramos em vão seu túmulo: não foi encontrado, em nenhum lugar colocou-se seu nome. O cemitério tem vista para uma pequena baía, diretamente sobre o Mediterrâneo, é esculpido em terraços de pedra; também colocam caixões nessas pedras. É de longe um dos lugares mais fantásticos e bonitos que já vi na minha vida. O Instituto tem o legado, mas, no momento, não se atreve a publicar nada em alemão. Eu me pergunto se, independentemente disso, as Teses histórico-filosóficas não poderiam ser publicadas em Schocken. Ele me deu o manuscrito e o Instituto só o obteve graças a mim.

Caro Scholem, é tudo o que posso dizer-lhe, e o fiz da forma mais escrupulosa e com o mínimo de comentários possível. Para você e sua esposa, saudações calorosas de Monsieur e de mim.

Sua,

Hannah Arendt

Portbou 1940, estación término para Walter Benjamin |Por DOCUMENTOS RNE

Cuando se cumple el 80º aniversario de la muerte de Walter Benjamin, Documentos RNE recrea los últimos momentos del filósofo y pensador alemán de origen judío.

Benjamin, enfermo del corazón y agotado físicamente, escapó de Francia en 1940, huyendo del avance de las tropas nazis. Después de pasar por Marsella para lograr un visado que le permitiera la entrada en Estados Unidos, buscó salir de Francia por la frontera con España. Pero al término de su marcha a través de los Pirineos, la policía española le comunica en Portbou que lo va a deportar de nuevo a Francia. Benjamin morirá esa noche por una sobredosis de morfina, aunque el certificado de defunción hablará de derrame cerebral.

El documental recorre la zona entre Portbou y La Jonquera, escenario del drama de Benjamin y de 400.000 refugiados españoles que solo un año antes habían atravesado los Pirineos en sentido contrario, huyendo de la represión franquista. Al otro lado de la frontera, Antonio Machado fallecerá en Colliure, a una docena de kilómetros de España, víctima también de una huida extenuante. Ambos, Benjamin y Machado, son un símbolo de la persecución y el exilio; de una búsqueda de la libertad que termina en tragedia.

Portbou, asomada al Mediterráneo y sede de una imponente Estación Ferroviaria Internacional, se convierte en este documental en un personaje más, con su memorial Pasajes, de Dani Karavan, cargado de simbolismo sobre el trágico destino de Walter Benjamin.

Portbou 1940, estación término para Walter Benjamin, reconstruye los últimos momentos del pensador alemán a través de los testimonios de Lisa Fittko, una judía antifascista que era el enlace para cruzar la frontera española, y Henny Gurland, compañera de fuga que será testigo presencial de su muerte. Además, incluye las voces de Maximiliano Fuentes, historiador, director de la Cátedra Walter Benjamin de la Universidad de Girona; Jörg Zimmer, presidente del Consejo Asesor de la Cátedra Walter Benjamin; Pilar Carrera, profesora del Departamento de Periodismo de la Universidad Carlos III y autora de Las moradas de Walter BenjaminMiquel Serrano, conservador del Museu Memorial de l’Exili de La Jonquera; Teresa Puig, de la Oficina de Turismo de Portbou; Joan Gubert i Macias, historiador y cronista oficial de Portbou; Jordi Font, director del Mèmorial Democràtic de Barcelona; y Pilar Parcerisas, crítica de arte, guionista de la película La última frontera, sobre el final de Benjamin, y creadora de la fundación Angelus Novus.

Para ouvir o documentário, clique aqui.

Documentos RNE se emite los viernes, de 23 a 24 horas, por Radio Nacional.

FONTE: https://www.rtve.es/radio/20200226/portbou-1940-estacion-termino-para-walter-benjamin/2004712.shtml

Hannah e Walter: um encontro de duas vidas | por Gustavo Racy

Assim como acontece com qualquer personalidade de destaque, também no que diz respeito aos pensadores é comum que nos voltemos aos relatos e registros biográficos. Às vezes o fazemos na tentativa de entender e coadunar melhor a obra com a vida que a produziu, por outras, buscamos suas biografias simplesmente pelo prazer, para entrarmos em contato com outros tempos, em busca do componente real, humano, daqueles a quem conhecemos por meio de pensamentos e teorias. Não raro, o fazemos porque subjaz em nós um pingo de idolatria, uma satisfação pessoal em nos identificarmos com aqueles que nos apaixonaram através de sua escrita, sua arte, seu pensamento. Devemos considerar todas essas relações válidas, contanto que possam ser distinguidas nos objetivos aos quais se servem a leitura. É difícil, por exemplo, evitarmos certo fascínio pela figura de Santo Agostinho quando lemos suas Confissões, um livro tanto autobiográfico quanto magnânimo tratado filosófico. E isso simplesmente porque sabemos, mesmo que inconscientemente, que toda obra é produzida por uma vida.

A relação entre obra e vida foi analisada, entre outros, por Walter Benjamin, filósofo cuja morte cumpre seu octogésimo aniversário este ano, e cuja data de nascimento contemplamos com esta breve reflexão. Dentre os comentadores de sua obra, talvez porque se aprenda desde muito cedo a pensar sobre a relação obra/vida sem que uma justifique a outra, é comum que nos voltemos a seus amigos e interlocutores, buscando no epistolário das relações amistosas indicativos e discussões marginais importantes à consolidação de seu pensamento crítico. É por isso que muitos dentre nós, benjaminianos, não hesitamos em ler suas correspondências com Bertolt Brecht, Gershom Scholem, Greta Adorno, Theodor Adorno, entre outros. É no movimento de formação e vivência de amizades que muito da obra de Benjamin tomou forma, e em grande parte, é por conta destas relações pessoais que seu pensamento foi legado: foram amigos e conhecidos seus como Georges Bataille, Theodor Adorno, Lisa Fitko, Bertolt Brecht e Hannah Arendt que salvaguardaram seus escritos e preservaram sua memória. Neste esforço, uma das relações mais bonitas e honrosas à sua filosofia foi, certamente aquela com Hannah Arendt, a começar por seu texto dedicado a Walter Benjamin e Homens e Tempos Sombrios. E esta amizade merece uma reflexão.

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No momento em que vivemos, a proliferação de governos de cepa fascista ao redor do mundo e o recrudescimento de posturas revivalistas herdeiras do socialismo real, isto é, herdeiras de um extrato mais tradicionalista do comunismo, trazem à tona a necessidade de uma reflexão acerca do pensamento político que Benjamin (um marxista autodeclarado) e Arendt (que negava identificações, embora apontasse aquilo com o qual não se identificava), compartilhavam. Nomeadamente, o esforço em se lançar de cabeça nos fenômenos sócio-históricos na tentativa de compreendê-los em sua origem, isto é, no vernáculo benjaminiano, no movimento que os fez vir-a-ser, que fez com que se tornassem o que são. Não foi por acaso que estes dois pensadores tenham firmado sólida amizade. Ambos estão à margem. “Eles, os refugiados”, são patinhos feios de seus círculos sociais: Benjamin, um marxista à contrapelo, com pendor anarquista, que não dispendeu energia suficiente com a “ditadura do proletariado”; Arendt, uma pensadora de método fenomenológico, descritivo, que parece não tomar posição sobre os eventos que aborda. Ambos judeus que se recusaram a adotar o sionismo ou o Partido Comunista. Ambos independentes, insatisfeitos, de caráter destrutivo.

Arendt e Benjamin passaram pela situação de párias, de apátridas, de alteridade germânica, primeiro e, depois, judaica, ao se refugiarem em França. E ambos foram realocados a posições problemáticas por parte daqueles que os enxergaram unicamente por sua trajetória pessoal. Em um mundo pautado pela lógica da representação realista (seja ela capitalista ou socialista), herdeira maldita do Século XIX, importa, antes, de tudo, a imagem que se possa construir sobre a vida que produz o pensamento. A isso se relegam aqueles cujo pensamento parece ser complexo e, sim, contraditório demais para que seja capturado a serviço de uma pauta ou causa (e o que nos custam as causas, como observou Max Stirner). No lugar do mosaico, da bricolagem, da constelação, da alegoria, o pensamento representacionalista (eis aí um neologismo), fixado na aparência, impõe a demanda pela perspectiva geométrica. Deste modo, enquanto Benjamin se tornou o patinho feio do marxismo, um pensador poético que “tem lá seu valor”, que escreve bonito, mas com cujo pensamento ninguém sabe o que fazer, Arendt se tornou a Bruxa Liberal, amante de nazista, anticomunista e racista. Interessante como seus críticos não deixam de recorrer a uma condição de gênero. À taxação de “amante de nazista” Hannah Arendt é rebaixada a um apêndice de Heidegger, como se sem Martin não houvesse Hannah. Interessante ainda, lembrarmos, em uma época em que falamos tanto sobre “passar o pano”, o quão fácil é condenar alguém que não passa pano para violência de Estado, independente do espectro em que se dê. Benjamin logo se desiludiu com os processos de censura pelos quais passavam os escritores soviéticos e foi um dos primeiros a se posicionar acerca dos Processos de Moscou, enquanto Arendt, a despeito de possíveis erros de diagnóstico, desde cedo de se dedicou a pensar sobre a pautas. De certo modo, este é o limite que se impõe ao reconhecimento de Benjamin como pensador marxista, ao mesmo tempo em que ponto de partida para a condena do pensamento de Arendt.

As acusações atuais contra Arendt e o análogo reconhecimento limítrofe de Benjamin que, apesar de sua grande fama e popularidade acadêmica, permanece de forma mais popular apenas como um autor “citável”, reproduzem uma ontologia neoliberal pautada em um esquema de compensações de débito e crédito, na qual os sujeitos têm, antes de tudo, um preço. O de Arendt e Benjamin sem dúvida não era baixo. “Deixe que raivem os falsos moralistas”, como disse José de Alencar. Críticas são imanentes à história. A amizade Arendt e Benjamin é uma relação emblemática da modernidade, que se estrutura pelo aspecto imagético das interações sociais e se reproduz num esquema de “exclusão por inclusão” (e vice-versa), como permite vislumbrar Giorgio Agamben em Beyond Human Rights, num círculo vicioso de prós e contras, erros e acertos, lucro e prejuízo. No que toca Arendt e Benjamin, tanto faz. Para entender a dimensão de uma amizade que se ergueu, antes de tudo, pela admiração mútua e pela confiança (uma amizade política, portanto), é preciso que nos coloquemos por fora deste círculo; uma tarefa difícil, bem o sabemos, contudo necessária. A lição para isso talvez se apresente pelo próprio Benjamin, em uma carta endereçada a Arendt em 8 de julho de 1940, uma semana antes de seu aniversário, portanto, e poucos meses antes de seu suicídio. Se, como disse Arendt, invocada por Cláudia Perrone-Moises neste mesmo blog, é verdade que desde “que o passado deixou de lançar uma luz sobre o futuro a mente do homem vagueia nas trevas” (Entre o passado e o futuro), na citação de La Rouchefoucauld a amizade entre Arendt e Benjamin é coroada, de forma redentora e para além de bem e mal, como o encontro de duas vidas: “Sua acedia garantiu-lhe a glória por muitos anos na obscuridade de uma vida errante e escondida”. Errantes e obscuros, párias, apátridas, judeus e alemães, estes dois pensadores deram à sua obra o peso de toda uma vida. E na obscuridade da errância, encontraram-se, Walter e Hannah.

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Gustavo Racy é antropólogo, doutor em ciências sociais pela Universidade da Antuérpia, especialista na obra de Walter Benjamin e editor da Sobinfluencia Edições – gustavo.racy@outlook.com

CfP: ‘Critique of Violence’ 100 years later— On the actuality of Walter Benjamin’s violence essay

2021 will mark the centenary of Walter Benjamin’s “Critique of Violence.” Contexto Internacional seeks short contributions on Benjamin in relation to the fast and slow violences of our present moment. Kristina Hinz (Free University of Berlin), Ludmila Franca-Lipke (Free University of Berlin), and Fatima Gabriela Soares de Azevedo (Rio de Janeiro State University) serve as guest editors of the forum. Full call for papers below.

‘Critique of Violence’ 100 years later—
On the actuality of Walter Benjamin’s violence essay

In 1921, Walter Benjamin published, at the age of only 28, his controversial essay ‘Critique of Violence’, representing an account on the republican model of governance in the light of the First World War. Identifying an intrinsic relationship between law and coercion, ‘Critique of Violence’ has become a highly influential text for the discussion on the role of violence in politics.

One hundred years after its original publication, the text has only gained in popularity. Contemporary scholars such as Giorgio Agamben, Slavoj Žižek and Judith Butler continue to engage with the violence essay, and have put forward their own, highly contrasting interpretations of ‘divine violence’ and ‘bare life.’

While the world has seen profound changes since the original publication of ‘Critique of Violence’, both the years 1921 and 2021 share the emergence of authoritarian forces in many countries, coupled with profound social and cultural changes, and economic depression. However, many of today’s most urgent questions and challenges, such as environmental conflicts and the climate crisis, forced migration and displacement, racialized conflicts and state violence, and, last but not least, the marginalization of LGBTIQ+ individuals and the rollback of women’s rights, call into question the actuality of Walter Benjamin’s ‘Critique of Violence’ and its concepts.

We seek to organize a forum of short critical reflections on Walter Benjamin’s ‘Critique of Violence’ 100 years after its original publication. We invite selected scholars in international relations, political theory, philosophy, law and other fields to contribute with pieces of approximately 3,000 words, for possible publication in Contexto Internacional in May of 2021.

We aim to stimulate new conversation on Benjamin’s ’Critique of Violence’ along the following lines, though we are open to other critical themes:
● Gendered and queer perspectives on legal violence: rollback of women’s and LGBTQI+ rights, organization and resistance (for example, the women’s strike).
● ‘Bare life’ in current world politics: refugees, displaced persons and legally marginalized groups.
● Postcolonial and intersectional perspectives on the ‘history of the oppressed’.
● (Racialized) law enforcement violence, resistance and insurgent movements (for example, Mães de Maio, Black Lives Matter)
● ‘Divine violence’ and reflections on ecological crises (for example, climate change, COVID-19 pandemic).
● State and global neoliberalism: urbanism, punitivism and access to essential goods.
● Law and critique of law: limits of the human rights regime and the democratic institutions amid the rise of authoritarian forces.

In order to foster the critical appreciation of this canonical European author, we are particularly interested in approaches that propose perspectives and discuss cases from the Global South.

Given the intention to publish the Forum in 2021, the deadline for submission of abstracts is 15 July 2020. Abstracts should not exceed 300 words and must be made through the Scholar One system: https://mc04.manuscriptcentral.com/cint-scielo

Please identify your abstract as ‘Critique of Violence centenary forum.’

Upon acceptance, the deadline for the submission of the complete article is 15 October 2020.

Guest Editors for this forum:
Kristina Hinz (Free University of Berlin)
Ludmila Franca-Lipke (Free University of Berlin)
Fatima Gabriela Soares de Azevedo (Rio de Janeiro State University)

Editors of Contexto Internacional:
Jimmy Casas Klausen (Pontifical Catholic University of Rio de Janeiro)
Paula Sandrin (Pontifical Catholic University of Rio de Janeiro

O totalitarismo de tempos sombrios: um diálogo entre Doutor Fausto e Origens do totalitarismo |Pedro Ferreira Leite

Hannah Arendt (1987) empresta sua concepção de “tempos sombrios” do poema An die Nachgeborenen (À posteridade), de Bertolt Brecht, para tratar da primeira metade do século XX. Esse período, marcado pelas catastróficas guerras mundiais, pelos horrores do totalitarismo e por um surpreendente desenvolvimento das artes e das ciências, permeou toda a obra legada por Arendt, numa tentativa de compreender os fenômenos brutais que abalaram todo o mundo de maneira irreversível. Como ela nota, muito embora Brecht retrate uma catástrofe pública, não secreta, de desordem e fome, de massacres e assassinos, de cólera contra a injustiça e desespero quando só havia injustiça e não revolta, tudo isto “não era em absoluto visível para todos, nem foi tão fácil percebê-lo; pois, no momento mesmo em que a catástrofe surpreendeu a tudo e a todos, foi recoberta, não por realidades, mas pela fala e pela algaravia de duplo sentido, muitíssimo eficiente, de praticamente todos os representantes oficiais que, sem interrupção e em muitas variantes engenhosas, explicavam os fatos desagradáveis e justificavam as preocupações” (Ibid., p. 7-8). Os “tempos sombrios” assim são porque foram escondidos, por governos invisíveis e por um discurso público que não se preocupa em discutir e entender os eventos humanos, mas escondê-los debaixo do tapete. Nas sombras, o mundo se torna tão dúbio que as pessoas almejam fugir da realidade, deixando de resistir a ela com sua humanidade. Resta, então, voltarmos nossa atenção justamente àquilo que é concreto, real, para compreendermos e, assim, resistirmos aos tempos sombrios.

Em Doutor Fausto (2015), Thomas Mann procura criar “nada menos do que um romance da minha época, disfarçado numa história de vida de artista altamente precária e pecaminosa” (MANN, 2001, p. 35). Assim, retrata, por outra perspectiva, os mesmos tempos sombrios que Hannah Arendt. Na trama de Mann, a história do compositor Adrian Leverkühn é também a história da Alemanha, que faz um pacto com o Demônio para tentar alcançar a grandeza e revolucionar completamente a música — e a História. O pacto fáustico, segundo Mann (2001, p. 29) reinterpretando Goethe, é a “escapatória das dificuldades da crise da cultura, a ânsia por eclosão, a qualquer custo, de um espírito orgulhoso e ameaçado de esterilidade, assim como o paralelismo entre a embriaguez popular fascista e uma euforia danosa desembocando num colapso”. Entendendo “cultura” como a própria tradição humanista alemã, percebe-se que o pacto é resultado de uma crise dos valores do humanismo burguês, dentre os quais se encontram os ideais da Revolução Francesa. Adrian, ao criar seu magnum opus, busca revogar o bom, o nobre, a alegria e a esperança dos princípios humanistas, substituindo-os pela “lamentação” do destino que tomaram estes princípios (MANN, 2015, p. 562).

 

Para ler o texto integral, CLIQUE AQUI.

O fascismo explicado por Jason Stanley

Alfons C. Salellas

    Na primavera de 2018 apareceu nas prateleiras das livrarias do Brasil um ensaio importante, que está fazendo sucesso em todo o mundo, intitulado Como funciona o fascismo, do professor de filosofia da Universidade de Yale, Jason Stanley, publicado pela L&PM de Porto Alegre e traduzido por Bruno Alexander.

    Bem ao início do seu livro, Stanley deixa claras duas coisas. A primeira, que a política fascista, tóxica de qualquer modo, não leva necessariamente ao estabelecimento de um Estado fascista. E a segunda, que o atual pode ser que não tenha a mesma aparência que tinha durante a década de 1960, mas que todos os sintomas daquilo que um dia chamou-se de fascismo voltam a estar presentes na cena internacional dos nossos dias. É sobre isto mesmo que versa este trabalho, brilhante e necessário, que revisita múltiplos exemplos entre a Itália dos anos vinte do século passado, passando pela Alemanha dos trinta e quarenta, até Myanmar, Hungria, Polônia e os Estados Unidos do presente. Cabe entender que a ausência do Brasil bolsonarista só se deve a época de redação do ensaio, mas o leitor não deixará de perceber estratégias que lhe serão infelizmente familiares.

      O problema com o fascismo é que dele criamos um mito, e os mitos são inatingíveis por definição, nada pode ser comparado a eles. Porém, lamentavelmente o fascismo não tem nada de mitológico. Foi uma realidade para milhões de pessoas durante o século XX i aqueles que fizeram a experiência contam que o clima que respiramos hoje tem muito a ver com aquele que existia nos momentos prévios aos grandes desastres humanitários. Com o nazismo se passa algo parecido. Uma coisa é que ele seja invocado automaticamente e seja usado como desqualificador aos cinco minutos de começar uma discussão entre duas pessoas com pontos de vista políticos opostos e, no outro extremo, que nunca se possa falar nele porque é um monstro que quedou relegado à noite dos tempos e ali é que deve ficar, quieto e guardado. Tanto a frivolidade como o respeito reverencial fazem-nos sombra para tratar de entender isto que hoje está a nos acontecer e é por este motivo que são tão bem-vindas as palavras de Stanley sobre a progressiva normalização de políticas extremistas em diferentes partes do mundo como, por exemplo, o trato desumano aos refugiados, as detenções indiscriminadas e encarceramentos injustos, as retóricas de candidaturas eleitorais contra a imigração que falseiam os dados com o intuito de chegar ao poder ou a mentira tratada como notícia, entre outros. Costumar-se a práticas moralmente reprováveis significa tornar habitual e ordinário aquilo que pouco tempo antes teríamos vivido como excepcional. Desta maneira vamos tolerando o intolerável cada vez com maior tranquilidade e, por conseguinte, como escreve o autor do livro, as acusações de fascismo sempre nos parecem exageradas posto que a invasão de condições ideologicamente extremas vão nos parecendo cada dia mais normais. A normalização, afirma Stanley, significa que as regras do jogo para o uso legítimo do adjetivo “extremo” estão mudando sem parar e isto faz com que as acusações de “fascismo” sempre nos pareçam exageradas, mas isto, segundo ele, não é um bom argumento contra o uso da palavra. Assim as coisas, torna-se necessária uma compreensão cabal do significado e as táticas que o fascismo emprega quotidianamente, e esta é a razão de ser e a pertinência do ensaio de Jason Stanley.    

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    O livro é dividido em dez pontos e um epílogo. Explica a necessidade que o fascismo sempre teve de apresentar a nação com um passado mítico, fabuloso e adulterado; a propaganda que usa para seus fins, a fobia a toda amostra de sofisticação intelectual – o fascismo não existe para dialogar e debater racionalmente, mas para ser imposto de forma visceral e emocional -; as teorias da conspiração nas quais acredita, ou finge que acredita, para inundar a sociedade de um irrealismo necessário para a melhor aplicação de medidas radicais, que logo serão socialmente percebidas como normais; o senso da hierarquia entre vidas que valem mais e vidas que valem menos; a vitimização com a emoção que esconde a contradição entre movimentos nacionalistas movidos pela igualdade e movimentos nacionalistas movidos pela dominação (os oprimidos de hoje podem converter-se nos opressores do amanhã ao querer promover a própria hegemonia); a obsessão com a lei a ordem por cima da igualdade e da justiça social; a demagogia dirigida contra as minorias sexuais, uma ameaça ao patriarcado, e, finalmente, as grandes metrópoles vistas como centros de perversão, mestiçagem e promiscuidade para definir aquilo que de um ponto de vista distinto é entendido como exemplo de pluralismo social salutar. O livro de Stanley não é um ensaio de filosofia política propriamente dito, mas uma explanação trufada de exemplos das estratégias que o fascismo usa para condicionar a política e a vida quotidiana da gente e, eventualmente, chegar ao poder.

    Sobre o problema histórico que o Brasil continua a carregar, vale a pena ler este fragmento: “Desde que Platão e Aristóteles escreveram sobre o assunto, os teóricos políticos sabem que a democracia não pode florescer em solo envenenado pela desigualdade. Não é só que os ressentimentos criados por tais divisões sejam alvos tentadores para um demagogo. O ponto mais importante é que a dramática desigualdade representa um perigo mortal para a realidade compartilhada necessária numa democracia liberal saudável. Aqueles que se beneficiam das desigualdades são frequentemente sobrecarregados por certas ilusões que os impedem de reconhecer a contingência de seus privilégios. Quando as desigualdades se intensificam, essas ilusões tendem a entrar em metástase.”

    Como funciona o fascismo pode ser entendido como uma longa meditação sobre aquilo que tanto preocupou Hannah Arendt, isto é, a persistência de elementos totalitários nas assim chamadas sociedades livres, motivo pelo qual não gostaria de acabar estas notas sem uma menção especial às últimas páginas do capítulo final, antes do epílogo, nas quais Stanley estabelece um fio condutor entre a iniciativa privada e a meritocracia defendidas por Hitler e o mercado livre desregulado promovido pelo liberalismo económico. Não é só que Hitler deplorasse que os sindicados representassem, segundo ele, a ineficiência nos negócios e na vida da nação – quando na verdade o fascismo os rejeita pela ligação que estabelecem entre indivíduos passando por cima de diferenças de raça ou de religião –, mas entendia a iniciativa privada como a plataforma ideal para entronizar o líder, o homem forte que a través do princípio da meritocracia se outorga o direito de governar aqueles que são tidos como fracos. O liberalismo económico vincula a virtude e a liberdade à riqueza que cada um foi capaz de acumular, de modo que, seguindo esta ideologia, não só a liberdade é algo que se “ganha” como o mesmo respeito é algo que as pessoas devemos fazer por merecer. Stanley, não obstante, já havia lembrado muito antes que não forma do vocabulário democrático que o respeito básico e igualitário deva ser uma conquista do esforço laboral, mas que todos somos merecedores dos bens básicos da sociedade e que toda a vida é igualmente digna. “Os movimentos fascistas – escreve – compartilham com o darwinismo social [do liberalismo económico] a ideia de que a vida é uma competição pelo poder, segundo a qual a divisão dos recursos da sociedade deve ser deixada para a pura concorrência do livre mercado. Os movimentos fascistas compartilham seus ideais de trabalho duro, iniciativa privada e autossuficiência. Ter uma vida digna de valor, para o darwinista social, é ter superado os outros pela luta e pelo mérito, ter sobrevivido a uma feroz competição por recursos. Aqueles que não competem com sucesso não merecem os bens e recursos da sociedade. Numa ideologia que mede valor pela produtividade, a propaganda que apresenta os membros de um grupo externo como preguiçosos é uma maneira de justificar sua colocação inferior numa hierarquia de valor”. Stanley admite sem problemas que todas as instituições e sistemas são imperfeitos, incluindo aqueles que dão as boas-vindas aos sindicados e promovem a ideia do bem-estar social, mas isto não representa para ele obstáculo algum, antes todo o contrário, para a defesa de uma mobilização conjunta visando melhores condições de vida universais, deixando a um lado diferenças de qualquer tipo – culturais, religiosas, de gênero ou de aptidão física e mental – que nos permita reconhecer aquilo que a todos nos une como humanos.