Um projétil chamado Hannah Arendt

Alfons C. Salellas Bosch*

Um dos contratempos daqueles pensadores que, vivos ou mortos, atingiram a certa altura notoriedade e difusão é o de serem apropriados para qualquer assunto e usados como certidão de veracidade, não importando se é para reivindicar causas nobres ou desprezar e caluniar aquilo que se ignora. Hannah Arendt alcançou este status já faz alguns anos a um nível internacional e, se bem é verdade que para aqueles que dedicam parte do seu tempo ao estudo da sua obra costuma ser uma alegria ver com frequência seu nome impresso, não o é menor a fatiga que já causa observar a quantidade de vezes que Arendt é citada de forma fraudulenta. Do segundo tipo tivemos no Brasil alguns casos, sendo o mais recente a coluna de Demétrio Magnoli na Folha de São Paulo, intitulada “A escola catalã – e a nossa” (28/10/2017), na qual utiliza a autora, entre outros motivos, para difamar o sistema de ensino catalão.

Sem se preocupar em citar fonte alguma, o senhor Magnoli se sente autorizado para assegurar ao Brasil que “na Catalunha, sob uma camada superficial feita de folclore, o nacionalismo desenvolveu-se como empreendimento educacional”, que colorindo mapas “as crianças ‘fabricam’ uma república catalã independente, separada de Espanha” e que a história (devidamente manipulada), a língua e a literatura catalãs são usadas como fonte de doutrinamento nacionalista. Intercaladas com algumas citações do texto arendtiano “A crise na educação” (1954), Magnoli fala de pressões do governo catalão para que crianças de nove anos assistam a manifestações contra a repressão policial espanhola ao plebiscito independentista e que, em alguns colégios, diretores impõem aos alunos cinco minutos de silêncio obrigatórios de protesto contra a prisão dos dois líderes sociais catalães imputados com o delito de sedição. Na verdade, o objetivo de Magnoli é estabelecer uma comparação entre aquilo que, segundo ele, estaria acontecendo na Catalunha e o doutrinamento que ele assegura ter-se instalado no Brasil à base de “discursos multiculturalistas, racialistas, terceiro-mundistas e, no limite, implicitamente antissemitas”, invocações no ENEM a essa béstia que leva por nome “direitos humanos” e outras calamidades do estilo. Mas o que aqui me interessa, por razões biográficas, é o assunto catalão. Por este motivo, de agora em diante vou me permitir escrever em primeira pessoa.

Natural de Barcelona, nasci quando ainda faltavam cinco anos para a morte do general Franco, cuja ditadura nacional-católica, que durou quarenta anos, proibia o uso público do catalão e seu ensino nas escolas. Fui educado na escola catalã, e em catalão, até chegar à universidade. Posteriormente, atuei como professor e assumi cargo administrativo em dois dos colégios da capital da Catalunha. Moro no Brasil desde 2008.

A sociedade catalã é orgulhosamente plural e multicultural e a escola que está ao seu serviço é uma representação dela. Plurilíngue – nele aprendi, além do meu idioma materno, o espanhol e o inglês –, este sistema de ensino, que já teve vários reconhecimentos internacionais, é inclusivo e tem se mostrado como uma ferramenta de primeira ordem para a paz social e o enriquecimento cultural do país. Os princípios que me foram inculcados não são outros que os de cidadania, democracia, liberdade, respeito à diferença e um gosto especial pela palavra, aspecto esse último pelo qual estou especialmente agradecido. Sou testemunha do grau de profissionalismo e do nível de compromisso ético e social dos docentes da escola catalã. Porém, o que ninguém nunca estará em condições de garantir em qualquer país do mundo são os abusos pontuais que algum professor ou professora possa chegar a exercer sobre seus alunos. Mas daí a condenar todo um sistema de ensino, com mais de 35.000 unidades escolares segundo dados oficiais do último ano letivo, existe um abismo. Este é o tipo de exercício demagógico que só podem praticar os vigaristas do lugar ou os aventureiros que escutam e olham interesseiramente a dez mil quilómetros de distância…

A fim de criticar o suposto doutrinamento que estariam padecendo os alunos brasileiros, Demétrio Magnoli não hesita em fazer uso das mentiras proferidas intermitentemente sobre a comunidade educativa catalã por parte de uma das direitas mais corruptas, reacionárias e nacionalistas do continente europeu, qual seja, o Partido Popular, que foi fundado por políticos e ministros de Franco e que hoje governa Espanha, com a inestimável ajuda do partido Ciudadanos, que nasceu precisamente para quebrar a convivência na Catalunha, soltando mentiras sobre a escola catalã, que de modo obsessivo tem sido um dos seus alvos preferidos. Para tanto, uns e outros não se preocupam em faltar ao respeito contra o profissionalismo de docentes e servidores da educação, o que numa sociedade plural e democrática é intolerável. Infelizmente, estas calúnias são repetidas nestas últimas semanas por todos os jornais publicados desde Madrid, notadamente o El País, que já perdeu toda a autoridade que já teve ao censurar e purgar das suas páginas, só no último mês, três colaboradores que fugiram da sua linha editorial no tocante à questão catalã, inclusive o renomado jornalista e escritor John Carlin, autor da biografia de Nelson Mandela.

Em tempos do ditador Francisco Franco, os alunos, os professores e as escolas em geral sofreram todos, sem exceção, o doutrinamento que levava por título “Fomento del espíritu nacional”. De 1939 até 1975, a escola em toda a Espanha ensinava a obedecer e a se submeter à autoridade, nunca a pensar por conta própria. Quando Magnoli usa Arendt a respeito do professor doutrinário, que pratica “uma intervenção ditatorial, baseada na absoluta superioridade do adulto” ou, ainda, sobre a intromissão da política dentro da sala de aula, teria sido mais feliz relacionando esses atropelos com o vivido durante os anos da ditadura nacional-católica, mas nunca com a pedagogia da escola catalã, cuja única guia são a competência e as necessidades sociais dos alunos. Essa escola que, de novo, vê sua paz perturbada na tentativa de sua aniquilação através de ataques externos que, esses sim, abrigam interesses políticos espúrios, nunca pedagógicos. Esses mesmos interesses sectários que no Brasil ostentam aqueles que gostariam de eliminar qualquer informação e debate sobre interculturalidade, gênero, direitos humanos, laicidade e, daqui a pouco já… arte. De minha parte, achei coerente deixar hoje Hannah Arendt em paz e, como despedida, escolho lembrar as palavras que certa volta o cantor valenciano Ovidi Montllor nos legou para a memória: “Há pessoas que não gostam que se fale, se escreva ou se pense em catalão. São as mesmas que não gostam que se fale, se escreva ou se pense”.

*Alfons C. Salellas Bosch é Doutor em Filosofia pela UFRGS, autor da tese Hannah Arendt: uma filosofia da fragilidade.